Com efeito, a partir da teoria brechtiana parece haver, para a criação dramatúrgica, uma íntima relação não mais somente entre conteúdo e forma – como na teoria de Szondi – ou entre a poética do dramático e a poética do espetáculo (forma e forma) – conforme a perspectiva de Ramos – mas também entre formas e modos de produção, ou seja, é colocada em questão a maneira como as relações entre os criadores, durante o processo de criação, interferem na forma teatral resultante. Pode-se afirmar, na esteira de Sarrazac, que o processo de criação da dramaturgia de uma encenação passa a atuar diretamente na conversão das formas dramatúrgicas e, em decorrência disso, nas relações entre textualidade, teatralidade e recepção, uma vez que, a partir do teatro épico, o espectador passa a ser considerado interlocutor privilegiado da cena.
Segundo Luiz Alberto de Abreu[1], “a relação ‘olho no olho’ entre personagens no palco transfere-se para ‘olho no olho’ entre ator/narrador/personagem e público. A ponte obstruída pela ‘quarta parede’ é novamente aberta[2]”, pois, ao privilegiar o diálogo ativo com o espectador, o sistema narrativo opera um deslocamento da ação teatral que, pensada na poética dramática como motor da relação intersubjetiva entre as personagens – da qual o espectador é testemunha e cúmplice, mas não participante – no teatro épico é pensada como uma prática – práxis – discursiva que, interpelando diretamente o espectador, o convida a tomar uma atitude crítica e criadora em relação à cena.
O convite crítico-reflexivo feito ao espectador, nesse caso, pode ser compreendido como um retorno freqüente à própria consciência [...] para, desse lugar que lhe é próprio, elaborar um juízo de valor acerca dos acontecimentos levados à cena. [...] O princípio dramático se mostra interrompido, problematizado, cada vez que um elemento cênico se revela, cada vez que o teatro se apresenta enquanto tal, quebrando com a lógica do drama fechado. As brechas no mecanismo dramático rompem com a ficcionalidade irrestrita e expulsam o espectador da vivência interior da obra, lançando-o de volta à própria consciência, convidando-o a desempenhar um ato propriamente estético, reflexivo [...], para empreender um ato propriamente autoral e analítico[3].
Contudo, questões concernentes às relações entre processo de criação, teatralidade e recepção e à perspectiva da textualidade como elemento material da cena, embora tenham sido inauguradas, na prática, pela dramaturgia brechtiana, não é atributo exclusivo do teatro épico. Já Artaud[4] discutia, em outros termos, a necessidade de se buscar uma maior performatividade do teatro a fim de atingir, concretamente, o espectador. Ao colocar em questão a supremacia do sistema literário e da linguagem verbal em relação à materialidade cênica e à corporeidade[5], dentro do teatro europeu, ele afirmava que a decadência do teatro – bem como de toda a cultura ocidental – se devia ao lugar de honra que, nele, era ocupado pelo texto e pelas convenções lógico-discursivas a ele atreladas. Para Artaud, a literatura funcionava como uma amarra na qual se prendia a linguagem teatral, estritamente cênica, e, nesse sentido, o uso do discurso verbal deveria, no teatro, ser calcado no poder que as palavras teriam de, por meio de sua modulação, ritmo e vibração, atingir a alma e o corpo do espectador. Segundo ele, a performatividade da palavra não estaria ligada ao seu significado, mas à sua existência quase física, à sua materialidade.
Mais do que isso: na perspectiva de Artaud, o texto não é visto como um elemento prévio, origem e fonte de toda a encenação e em relação ao qual esta só poderia ser concebida como “uma segunda versão de um texto definitivamente escrito” (ARTAUD, 2004: 73). Pelo contrário: segundo ele, a encenação constituiria uma linguagem particular, na qual a importância do texto se igualaria a de todos os outros componentes cênicos e a palavra nasceria em estreita relação com a gênese da cena.
[...] Eu creio que o teatro só poderá voltar a ser ele próprio no dia em que os autores dramáticos mudarem completamente sua inspiração e, sobretudo seu meio de escritura. Para mim, a questão que se impõe é de se permitir ao teatro reencontrar sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, [...] de gritos e onomatopéias, linguagem sonora, mas que terá a mesma importância intelectual e significação sensível que a linguagem das palavras [...]. [Os] gestos, as atitudes, os signos, serão inventados à medida que forem pensados, e diretamente no palco, onde as palavras nascerão para rematar e concluir esses discursos líricos, feitos de música, de gestos e de signos ativos. (ARTAUD, 2004: 80).
Com uma perspectiva semelhante à de Artaud, no que se refere ao pensamento do teatro como uma linguagem estritamente cênica, Barba[6] amplia a noção de texto e dramaturgia, ao considerar que a relação entre a cena – ou o trabalho que é operado por ela – e o espectador é elemento definidor da noção de ação, central para o seu conceito de dramaturgia. Segundo ele (BARBA & SAVARESE, 1995: 69), “todas as relações, todas as interações entre as personagens ou entre as personagens e as luzes, os sons e os espaços, são ações. Tudo o que trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua compreensão, suas emoções, sua cinestesia, é uma ação”. De maneira complementar, Barba afirma que as ações só são operantes quando elas estão em relação umas com as outras, entrelaçadas em uma textura, ou, em outras palavras, quando elas se tornam um tecido cênico: “a palavra ‘texto’, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa ‘tecendo junto’. Nesse sentido, não há representação que não tenha texto”.
Dessa perspectiva, a noção de dramaturgia corresponderia àquilo que, nos Estudos da Linguagem, é denominado como discurso teatral, o qual se diferencia do texto literário justamente por seu alto poder performativo – ou seja, por seu poder de realizar simbolicamente uma ação – e se caracteriza, basicamente, pela ação intencionada que exerce sobre o espectador (PAVIS, 1999: 103). Isso significa dizer que o discurso teatral é produzido na relação entre a cena – e todos os seus componentes – e o espectador, uma vez que se trata de uma prática de enunciação e suas articulações discursivas[7]. Segundo Charaudeau[8], como o discurso teatral não se reduz à manifestação verbal da linguagem, mas compreende os códigos da manifestação linguageira – isto é, de uma instância extra lingüística na qual se desenvolve a mise-en-scène da significação – e pode utilizar-se de vários códigos semiológicos – tais como o icônico e o gestual – a mise-en-scène discursiva, no teatro, depende, então, das propriedades (ou características) de todos esses códigos e das relações que entre eles se estabelecem, ao atuarem em conjunto.
No vasto campo dos Estudos da Linguagem – que abarca desde a Semiologia até a Análise do Discurso e a Filosofia da Linguagem, na qual se inclui a Teoria dos Atos de Fala[9] – não somente as discussões referentes às noções de texto e discurso vão encontrar eco nas teorias sobre o teatro, como também a própria linguagem teatral vai se tornar, cada vez mais, objeto de discussão desses Estudos, influenciando diretamente o pensamento sobre a Linguagem. É exemplar o mútuo interesse que existe entre os estudos teatrais e as teorias pós-estruturalistas que, já na década de 60, vão se debruçar, de modo especial, sobre as noções de textualidade, teatralidade e autoria e vão acabar por tecer parâmetros bastante pertinentes para se pensar as relações entre texto e cena no teatro contemporâneo. É possível citar, como exemplo, os escritos de Derrida sobre Artaud e uma boa parte da produção crítica de Barthes, para a qual a questão do teatro e da teatralidade é pedra fundamental.
Embora Barthes, ao discutir especificamente a noção de teatralidade[10], pense o texto em certa oposição a ela – uma vez que a teatralidade é, segundo ele, justamente o teatro sem o texto, constituindo-se como uma “espessura de signos e sensações” que “submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior[11]” – no que tange ao texto literário, Barthes vai contrapor, ao conceito de literatura, a noção de escritura. Assim, ele possibilita pensar o texto – antes atrelado ao enunciado verbal – como uma enunciação.
Dessa perspectiva, Barthes[12] considera que o texto vai ser engendrado na relação entre a escritura – constituída por todo trabalho e toda prática de inscrição – e o leitor. Segundo ele, a escritura é gerada pela destruição do conceito de texto como intrinsecamente ligado ao impresso. Ao considerar o texto como um teatro da linguagem em que o escrever é um verbo intransitivo cujo fim é ele mesmo, cujo fim é o trabalho de inscrição, Barthes fatalmente desloca a noção de texto do conceito de obra fechada, acabada, resultante do processo de escrita do autor, para uma percepção mais ampla do texto como fruto da articulação entre a produção do scriptor e a dimensão interpretativa do leitor. Para ele (BARTHES, 2004: 61), o scriptor – ao contrário do autor antigo, que tem como pressuposto uma anterioridade em relação ao texto – nasce ao mesmo tempo em que nasce seu texto. Nesse sentido, o scriptor não precede ou excede sua escrita – ou melhor, seu gesto de inscrição – e não há outro tempo para além do tempo da enunciação: todo texto “é escrito eternamente aqui e agora”. Ou seja, para Barthes, escrever, mais do que uma operação de registro ou “pintura”, é uma operação performativa – uma enunciação cujo conteúdo é o próprio ato de enunciar – e o texto “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original[13]”.
Mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino: o leitor é [...] apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito (BARTHES, 2004: 64).
Ao deslocar a unidade do texto do autor para o leitor, Barthes vai permitir que se conceba tanto a dramaturgia – como prática textual e cênica – quanto o texto resultante desta operação, como um espaço em que se reúnem dimensões múltiplas, originadas no embate entre as diversas escritas, ou melhor, entre os diversos gestos de inscrição que, livres da determinação de um autor-deus, vão compor o tecido dramatúrgico: o gesto do dramaturgo, mas também o gesto do ator, do encenador e de todas as funções vinculadas à sua criação. Em outras palavras, pode-se afirmar que a dramaturgia, ao ser concebida como uma escritura, resulta em uma operação entre textos, em uma tessitura intertextual que vai ser constituída por muitos gestos de enunciação, todos em permanente diálogo. Nesse sentido, Barthes aponta para a destruição do autor, que morre ao mesmo tempo em que nasce o leitor/espectador como o espaço onde se reúne todos os gestos de que a escritura é feita. Mas aponta, também, para a possibilidade da dramaturgia ultrapassar os limites da autoria e da literatura e, não mais vinculada estreitamente a um suporte de papel, ganhar o estatuto de textura da cena, corroborando não somente a teoria brechtiana e o pensamento, em certa medida, de Artaud, mas também a perspectiva de Barba, pois, ao se conceber a dramaturgia como textura cênica, torna-se possível pensá-la, então, não como enunciado, mas como uma enunciação[14] necessariamente coletiva e polissêmica (a morte do autor pressupõe a polissemia do texto[15]). E pensar a dramaturgia como enunciação coletiva, isto é, como um texto que se tece junto, implica em pensá-la no âmbito da criação compartilhada da cena.
[1] Dramaturgo responsável pela dramaturgia de O Livro de Jó, do Grupo Teatro da Vertigem, e professor da Escola Livre de Teatro de Santo André, Luís Alberto de Abreu tem coordenado, nos últimos dez anos, diversas experiências de criação colaborativa, como a Oficina de Dramaturgia e o projeto Cena 3x4, ambos realizados pelo centro cultural Galpão Cine Horto. Para ele, parece ser intrínseca a relação entre processos compartilhados de criação dramatúrgica e uma poética do texto que opere com um sistema narrativo, pois esta se reflete em sua prática teatral, pois ele tanto realiza dramaturgias colaborativas como privilegia, em sua poética, a linguagem rapsódica.
[2] ABREU, Luiz Alberto. A restauração da narrativa IN: O Percevejo, Revista de Teatro, Crítica e Estética do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UNIRIO. Rio de Janeiro, ano 8, nº 9, 2000, p. 124.
[3] DESGRANGES, Flávio. Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador IN: Sala Preta, revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. São Paulo: ECA/USP, n. 8, 2008, p. 14.
[4] Essas questões perpassam todo o pensamento de Artaud. As referências e citações utilizadas aqui são, principalmente, de: ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999; ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2004.
[5] O pensamento artaudiano vai influenciar diretamente diversas manifestações cênicas – como a performance, o happening, o teatro performativo – em que o corpo é presença forte.
[6] BARBA, Eugenio. & SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo, Campinas: HUCITEC, 1995, p. 69.
[7] Em razão da complexidade do estatuto enunciativo do discurso teatral – que ocorre em vários níveis e compreende, principalmente, uma situação interna (relação interlocutiva entre os personagens) e uma situação externa (relação entre as instâncias reais: ator – ou ainda, instância produtora do discurso cênico da qual o ator é veículo – e espectador) – essa ação intencionada encontra-se, muitas vezes, mascarada.
[8] CHARAUDEAU, Patrick. Une analyse sémiolinguistique du discours IN: LANGAGES. Paris: Larousse, n. 117, 1995.
[9] Em Como fazer coisas com as palavras – texto inaugural da Teoria dos Atos de Fala – Austin vai abordar a função performativa da linguagem, por meio do estudo dos verbos performativos. Tal abordagem vai influenciar, diretamente, os estudos contemporâneos sobre a performance, que dela vão se apropriar para discutir a questão da performatividade.
[10] BARTHES, Roland. Le théâtre de Baudelaire IN: Écrits sur le théâtre. Paris: Seuil, 2002, pp. 122-129.
[11] Ibidem : 122. Tradução minha, do original em francês: “épaisseur de signes et de sensations” qui “submerge le texte sous la plénitude de son langage extérieur”.
[12] BARTHES, Roland. A morte do autor IN: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 58-64.
[13] Ibidem: 62.
[14] Segundo Barthes, “a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição sem precisar ser preenchido pela pessoa dos “interlocutores”. Linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além ‘daquele que escreve’, tal como ‘eu’ não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma ‘pessoa’, e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer ‘suportar’ a linguagem, quer dizer, para a esgotar” (BARTHES, 2004: 62).
[15] BARTHES, 2004: 64.