ENTRE PAREDES E MURMÚRIOS.
Gabriel Miranda Coelho
A– Levante, lave e pinte o seu rosto para que fique vivo como o meu.
B– Levante, desamarrote este rosto cansado pelas marcas das teias do tempo, este ar mórbido, cheiro de poeira, corpo putrefato.
C– Estou presa a este corpo como quem é preso ao passado de um deserto sombrio que já não me recordo mais, e que também não quero. Vêm sempre imagens a tona do que eu fui e fujo, mas para onde? Estou farta de mim mesma. Apenas sei que sou mulher. Ana, Maria, Gabriela, Tereza, virgem, puta, EU SOU!
D– Eu lavo o seu rosto, menina.
E– Tudo na vida passa menos poeira e bagunça.
C– Sou apenas carne; carne, osso e merda.
F– Limpo como ninguém as marcas deixadas pelas fincadas do relógio. Dou banho, levo para passear, tomar o sol da manhã. Ainda tenho a vitalidade de antes, ave de rapina. Dentro de mim não corre sangue; corre força, ar fresco e juventude.
E– Pena, pena. Tenho pena.
B– Anda menina, mostre o rosto, levante-o. Seja útil, já que a presença é nada agradável... abra as pernas, deixe nossos convidados entrar com a força de mil cavalos, barcos à vela, canhões a disparar e a vida restabelecer nessas entranhas secas, natureza morta de frutas secas.
E– As frutas secas são ótimas opções para lanches entre as principais refeições. Duram mais que as frutas frescas, são mais práticas e conservam os mesmos nutrientes só perdendo o líquido da fruta. É um alimento saudável, totalmente natural, sem adição de conservantes e açúcares.
D– Muito útil o seu comentário, minha senhora...
F– Faço ótimas receitas caseiras com frutas secas, pena que a memória não anda lá essas coisas, deliciosas, assim que lembrar. Faço tortas, como carne, bebo o cálice, roo as unhas.
A– As mesmas memórias de sempre? Eu as fiz melhor que você, e seu marido sabe disso... Adentra a boca maçã fresca, líquido divino de ardor salgado, fiquei tão ocupada com as mordidas da serpente em meus lábios, que de uivo subi aos céus, fiquei sentada à direita de Deus Pai, todo poderoso, de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos.
C– Minha alma anda tão ressecada, morta, sem brilho e sem cor. O que fiz meu Deus? Para merecer tamanha peste em minha miséria permanente. Eu que sempre fui viva, não tão bela, mas melhor que os dias atuais. Sinto dores que não sentia, meus joelhos estão firmes, custam a se mover, penso que estou ficando velha.
B– Quebrada, nunca teve um centavo furado no bolso, mostrava as pernas para arrecadar fundos, tudo seu sempre foi decadente, sem brio. Ah... quanta preguiça desse fim de mundo e ter que aguentar isso por toda a eternidade! Absolva-me para a luz, Senhor, antes que eu enlouqueça com essa morta e meu resto de estômago vomite!
F– Criei um emplasto para marcas de desespero e fim da cor. Ah, minha memória, tenho que encontrar o meu caderno com soluções.
E– Basta usar a crendice, ela age nas sete proteínas da pele responsáveis pelo rejuvenescimento. O resultado é uma pele mais firme e hidratada, com tom uniforme, rugas preenchidas e linhas menos aparentes.
B– Se esqueceu de usar?
A– Nem todas foram agraciadas com um ar sedoso e saudável quanto o meu.
D– Claramente foi abençoada por nosso Senhor Jesus, que Ele cuide dos seus caminhos e olhe...
E– olhe como e onde estamos, todas na merda, que agraciamento tem nisso? SILÊNCIO!
Pensei ter ouvido o relinchar do pássaro negro que beija a morte.
Não foi nada, talvez sejam ratos, baratas e larvas corroendo nossos restos. RISOS POR TODOS OS LADOS. Corroendo nossos restos.
B– Mostra o rosto criatura do inferno, sofredora, satânica e obsessiva.
C (cantando) – Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim
Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí
Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar
E– Mostrar o rosto? Que criatura do inferno, sofredora, satânica e obsessiva?
B– a sua mãe, estúpida.
E– ah, explicado, falava da sua mãe!
D– Sua mãe era tão bela, você também é! Será que posso fazer algo para ocupar o tempo das minhas grandes inspirações?
B– Puta! Minha mãe era uma puta.
E– Não fala assim, ela era prostituta, sempre elegante de pernas abertas, disputadas por todos os mendigos leprosos. Estamos todas no mesmo limbo que importância tem isso agora?
B– Como Brás Cubas, dedico esse espetáculo ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.
C– Me libertem daqui! Estamos presas, somos presas perfeitas para olhos atentos. O relógio bateu 3 horas, as voltas do tempo nos rodeiam, trazendo essas rachaduras no espelho, as mesmas de um rio em estado de seca progressiva. Onde sofri abusos dos mais variados tipos, degolada e dada de alimento aos vermes e lagartos mortos de fome e desejo.
Acorda, vem ver a lua
Que dorme na noite escura
Que surge tão bela e branca
Derramando doçura
Clara chama silente
Ardendo meu sonhar
As asas da noite que surgem
E correm no espaço profundo
Oh, doce amada, desperta
Vem dar teu calor ao luar
(...)
D– Eu queria tanto ter impedido! Você estava tão linda com aquele vestido preto, bordado a mão, tão branca. Eu tentei, tentei corri gritei nada aconteceu além dos meus gritos respondidos pelo eco. ECO. ECO. Sangue correndo por entre a terra e o vestido preto bordado a mão tão branca sem uma gota Eu desesperada gritei, gritei nada respondia além do eco e do vazio. Eu tentei, minhas mãos ficaram sujas e eu...
OLHA, UM ESTALO.
TUDO SE MODIFICA TÃO RÁPIDO, CAMINHAM, NÃO ENCOSTEM, NÃO ENCOSTEM, NÃO.
Suspiro uma, duas e três vezes. Não me lembro, onde eu estava. Ele estava lá, abre a porta
C– (...) Quisera saber-te minha
Na hora serena e calma
A sombra confia ao vento
O limite da espera
Quando dentro da noite
Reclama o teu amor
Acorda, vem olhar a lua
Que brilha na noite escura
Querida, és linda e meiga
Sentir meu amor e sonhar
A– Banhada em vinho branco, dos pés a cabeça. Me afogo
D– gritos, ouço gritos, o que eu fiz, posso ajudar? Hein
A– torta, a porta, luzes me cobrem, me envolvem como sempre
D– te darei eletrochoques para satisfazer seu brilho
A– amordaço com seda branca da minha gravata
D– quer que ajude a respirar?
A– Levarei para meus lençóis de 500 fios egípcios, depois de usada me livrarei do resto. Dos seus restos.
A e D– Ahhhh MORTAS
F– Bem vindas, eu sei que chegaram agora. A porta da casa está aberta, esse ar fresco que perpassa por nós é momentâneo, logo estaremos em um local quentinho e aconchegante.
C– Somos pobres restos de mulheres abandonadas à própria sorte, julgadas e condenadas por todos que nos olham! Façam alguma coisa, apanhamos diariamente nas ruas, nas casas e vocês só olham! O que farão? NADA, nunca fazem nada, que tipo de humano é você que nos deixam fragilizadas, cuspindo sangue. Que nos condenam por toda uma infinitude de tempo? Ajude-nos! Tire-nos daqui!
F e E IMITAÇÃO– Quando cheguei aqui era tudo tão desajustado, ao longo do tempo fui colocando em ordem a casa, a comida, as paredes e os murmúrios, os murmúrios, sim, os murmúrios, quase nem existem mais. Vim sem ter o que por na boca, cá estou eu. Mas por que eu?
B– Estão chegando, estão chegando... as embarcações atracaram, homens de todas as cores descem armados, rodeiam, riem, matam nossos filhos, comem da nossa comida! Estão chegando, estão chegando para nos fazer o mal! Estupram nossas filhas! Desejo porque desejo: SÍNDROME DE MÖBIUS, FETUS IN FETU, PROGÉRIA, DISPROSOPIA, EPIDERMODISPLASIA VERRUCIFORME, SÍNDROME DE PROTEUS, PORFIRIA CUTÂNEA, ELEFANTÍASE, FIBRODISPLASIA OSSIFICANTE PROGRESSIVA, DUPLICAÇÃO PENIANA, PSORÍASE Para que sintam na própria pele a dor de uma guerra. METRALHADA
F– Senhoras, sejam bem vindas...
E– Quando cheguei aqui era tudo tão desajustado, ao longo do tempo fui colocando em ordem a casa, a comida, as paredes e os murmúrios, os murmúrios, sim, os murmúrios, quase nem existem mais. Vim sem ter o que por na boca, cá estou eu. Mas por que eu?
F– Aprendeu comigo rápido minha querida, entrem! Cheguei aqui há anos, a inveja gera cobiça no que temos e no que somos. Sequei com algo dentro de mim que corroia, adentrava minhas entranhas, definhei, perdi. Entrem, entrem... bem vindas...
C– Pobre suicida colocou a própria vida nas mãos de um homem que nada podia fazer a não ser estuprar, espancar, espancar e estuprar. E nesse momento, eu juro. Nós somos infinitos! O próprio pai, aquele que do esperma se fez embrião, criança e mulher.
E– Madame Bovary, não resisti e morri.
ORGASMOS, MURMÚRIOS, TORTURAS
C– Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas.
POST MORTEM
C– NASCIMENTO DE VÊNUS, A LUZ DO PARTO VAI ALÉM DO QUE PODEM VER OS OLHOS. MOSTRA SEU ROSTO.
OBSERVAÇÃO: Para melhor compreensão do texto, ler pdf, já que para o blog houve problemas com a edição, que se faz necessária para entendimento.
produção dramatúrgica do curso de artes cênicas da ufop: artigos, ensaios, experimentações textuais e peças teatrais.
segunda-feira, novembro 05, 2012
segunda-feira, maio 28, 2012
1.5 Dramaturgias polifônicas, poéticas do espaço
Embora
o conceito de polifonia – desenvolvido por Bakhtin acerca da obra de
Dostoiévski – se debruce, especificamente, sobre a produção de um único autor,
ele é bastante profícuo – em razão de suas características específicas – para
se pensar não somente as relações criativas que ocorrem no âmbito dos processos
compartilhados de criação, mas, principalmente, a tessitura resultante desses
processos. Antônio Araújo também aborda, em sua tese de doutoramento, o
conceito de polifonia, mas em uma perspectiva diversa, pois centrada na
definição conceitual do processo colaborativo e das relações entre os criadores.
Aqui, o meu desejo é buscar para a dramaturgia produzida em um processo de
criação colaborativa, um conceito que abarque suas características formais,
decorrentes, do meu ponto de vista, desse modo de produção no qual as matérias
cênicas diversas estão em permanente fricção e diálogo.
Segundo
Bakhtin (2008: 5), a polifonia é caracterizada, precisamente, pela “multiplicidade
de consciências eqüipolentes e seus mundos que se combinam numa unidade de
acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade”. Desse modo, uma tessitura
polifônica não se caracteriza por uma idéia de progressão ou de acumulação –
isto é, ela não é caracterizada por aquilo que Bakhtin denominou, em relação à
visão artística de Goethe, como série em
formação[1]
– mas opera, basicamente, por meio de suas categorias fundamentais, a coexistência e a interação (BAKHTIN, 2008: 31). Isso significa dizer que, no texto
polifônico, não só há uma multiplicidade de vozes em diálogo constante, como
também, em conseqüência desse dialogismo, há ainda uma simultaneidade de planos
– uma multiplanaridade – e uma heterogeneidade de matérias das quais esse
tecido é constituído (BAKHTIN, 2008: 16). Assim, embora a obra polifônica possa
ter, como em Dostoiévski, uma “profunda atração pela forma dramática[2]”,
o conceito de polifonia é incompatível, conforme salientado pelo teórico russo,
com a premissa de um mundo homogêneo, típico da poética do drama, pois este é
monologicamente uno. Em outras palavras,
a multiplicidade de vozes, planos e matérias resultaria no enfraquecimento da
forma dramática.
As réplicas do
diálogo dramático não subvertem o mundo a ser representado, não o tornam
multiplanar; ao contrário, para serem autenticamente dramáticas, elas
necessitam da mais monolítica unidade desse mundo. [...] As personagens mantêm
afinidade dialógica na perspectiva do autor, diretor, espectador, no fundo preciso
de um universo monocomposto. A concepção da ação dramática que soluciona todas
as oposições dialógicas é puramente monológica. A verdadeira multiplanaridade
destruiria o drama, pois a ação dramática baseada na unidade do mundo, já não
poderia relacionar e resolver essa multiplanaridade (BAKHTIN, 2008: 18).
Diferentemente
da forma dramática – que, por meio da progressão de uma ação, ocorre na
dimensão temporal – a polifonia, segundo Bakhtin, vai ocorrer no espaço e
procurar “captar as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las
e contrapô-las”, pois, na obra polifônica, “interpretar o mundo implica em
pensar todos os seus conteúdos como simultâneos e atinar-lhes as inter-relações em um corte temporal[3]”.
Nesse sentido, é possível distinguir o dialogismo característico de uma
tessitura dramatúrgica polifônica da noção de diálogo que caracteriza a poética
do dramático ou mesmo da premissa de que o fenômeno teatral é, por excelência,
uma construção coletiva, isto é, da idéia de que o fenômeno teatral poderia ser
polifônico simplesmente por ser constituído por uma determinada multiplicidade
de elementos materiais, ainda que a resultante cênica desta multiplicidade seja
homogênea ou busque a totalização, como na gesamtkustwerk
(obra de arte total) preconizada por Wagner. Em uma dramaturgia polifônica, ao contrário, a heterogeneidade dos
diversos elementos significantes presentes no tecido dramatúrgico da cena, é
resultante de um modo de produção não somente coletivo, mas que deseja o confronto
entre as vozes criadoras, garantindo sua imiscibilidade e eqüipolência.
Desse
modo, tanto o processo de criação é polifônico como também o serão, como aspectos
decorrentes deste primeiro, o discurso cênico produzido e o mundo ficcional
plasmado por meio das relações entre os criadores e as matérias heterogêneas
que compõem a cena. Dessa perspectiva, é possível afirmar que, em uma dramaturgia polifônica, a relação entre
as vozes criadoras – ou entre as matérias significantes do discurso cênico – produz
uma inscrição, um rastro desse embate entre vozes na superfície do texto e, até
mesmo, na estruturação, por assim dizer, “fabular” da dramaturgia, o que é
evidenciado, por exemplo, pelo uso da coralidade. Assim, embora o conceito de polifonia
não esteja restrito à produção escrita – pois se refere também ao diálogo que é
operado entre as matérias heterogêneas do discurso cênico, fazendo com este se
constitua como um tecido multiplanar – um aspecto bastante importante do
dialogismo presente nesse conceito é a percepção de que ele vai não somente localizar
a dramaturgia polifônica nas fronteiras entre a escrita e a cena, como, em
decorrência disso, vai desterritorializá-la.
Nesse
sentido, como salienta Sílvia Fernandes[4],
talvez seja arriscado dissociar a escrita da cena, ou a textualidade da
teatralidade – como em Barthes, que definia a teatralidade como o teatro menos
o texto – uma vez que “a criação conjunta de cena e texto”, nos processos
contemporâneos de criação colaborativa, “supera a polarização entre as duas
instâncias e contribui para a diluição de fronteiras rígidas, abrindo espaço a
um vasto campo de práticas que subsidia e informa tanto a produção do texto
literário quanto do texto cênico” (FERNANDES, 2010: 102). Como ela afirma em
relação à experiência do Teatro da Vertigem, cuja “produção de dramaturgias e
encenações baseadas em pressupostos construtivos semelhantes [...] explica, ao
menos em parte, a inclinação desses textos para a incorporação de alguns
paradigmas cênicos”, sem dúvida alguma, o texto colaborativo deverá refletir,
na apropriação lingüística que faz da matéria cênica, o processo polifônico que
o engendrou.
[1] “[Goethe] procura perceber todas as
contradições existentes como diferentes etapas de um desenvolvimento uno, tende
a ver em cada fenômeno do presente um vestígio do passado, o ápice da
atualidade ou uma tendência do futuro; como conseqüência, nada para ele se
dispõe num plano extensivo” (BAKHTIN 2008: 31).
[2]
BAKHTIN, op. cit., p. 18.
[4] FERNANDES, Sílvia. Teatralidade e textualidade: a relação
entre cena e texto em algumas experiências de teatro brasileiro contemporâneo IN:
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades
Contemporâneas. São Paulo, Perspectiva, 2010, pp. 101-111.
segunda-feira, janeiro 02, 2012
1.4 Dramaturgia coletiva, autoria compartilhada
Dentro da maior parte do pensamento teatral produzido no século XX – de Gordon Craig e Artaud a Renato Cohen, de Roger Planchon a Robert Wilson – a idéia – mais ou menos radical – do encenador como mente única, origem da criação teatral, é recorrente. Para Gordon Craig, por exemplo, o teatro, a fim de se constituir como obra de arte autônoma, não deveria se subordinar a nenhum domínio artístico específico, inclusive ao texto. Para isso, a encenação – ao contrário do que sonhava Wagner – não poderia ser fruto da comunhão de diversas artes (ou artistas), mas resultante da técnica particular de um único criador que, reunindo em si todas as qualidades de um “mestre do teatro”, engendraria não somente sua própria arte – uma arte independente e criadora, a arte do encenador – mas, ainda, a renovação do teatro[1].
Tradicionalmente um lugar ocupado pelo dramaturgo, com a consolidação da idéia de que a escrita cênica se constituiria como uma obra autônoma em relação ao texto escrito, do qual, em uma perspectiva anterior, ela deveria emergir, o encenador se tornou o grande eixo do espetáculo, passando a exercer uma função estruturante na concepção da obra teatral. Segundo Pavis (1999: 132), a escrita cênica é, justamente, a encenação “assumida por um criador que controla o conjunto dos sistemas cênicos, inclusive o texto, e organiza suas interações, de modo que a representação não é o subproduto do texto, mas o fundamento do sentido teatral”. Desse ponto de vista, é possível afirmar que não somente a poética espetacular se consolidou como o novo paradigma do século XX – em oposição à poética do texto – como também o encenador, tornando-se o “responsável pela criação de um sistema cênico regido por leis próprias[2]”, foi alçado à condição de autor do espetáculo.
Contudo, a partir dos anos 60, a criação coletiva, manifestada por vários grupos como, por exemplo, Living Theather, Thêatre du Soleil, Teatro La Candelaria, TEC – Teatro Experimental de Cali – e, no Brasil, União e Olho Vivo, Pod Minoga e Asdrúbal Trouxe o Trombone, entre outros, respondeu – e continua respondendo – a uma necessidade de descentralização das figuras do dramaturgo e do encenador, tidos, até então, como os demiurgos da cena; e a uma necessidade geral de temas que abrangessem o momento histórico no qual viviam os atores – sobretudo eles, pois eram desprivilegiados no cenário das decisões artísticas – e seus grupos teatrais. Com a proliferação de espetáculos construídos em um sistema de criação coletiva, principalmente nas décadas de 60 e 70, abriu-se um campo fértil para a investigação de uma dramaturgia que fosse erigida a partir da criação atoral, como denota o texto Dramaturgia do Ator, de Enrique Buenaventura, dramaturgo e diretor do Teatro Experimental de Cali.
Somente um processo de produção que organize a participação criadora dos atores em todas as etapas e níveis do discurso do espetáculo pode ser o genotexto de textos que não sejam meras imitações ou adaptações da tradição ou da vanguarda do teatro ocidental, de textos que elaborem sua linguagem e suas personagens a partir das realidades que vivemos aqui e agora, mediante essa assimilação de todas as influências que somente a maturidade de uma expressão artística nos dá[3].
Em razão disso, houve também uma grande valorização da potência criadora do ator – para além de suas potencialidades interpretativas – e fortes estímulos para que este se tornasse um artista “total”, da não-especialização: capaz de pensar, de propor, de criar e não apenas de “servir”.
Para isso, é necessário passar da condição de “histrião” à condição de ator, da condição de intérprete à de criador que tem o direito e o dever de intervir (metodologicamente) em todos os níveis e aspectos do processo de produção do discurso do espetáculo e nas relações deste com o público[4].
Para Antônio Araújo (SILVA, 2008: 27), além da significativa participação do ator no processo de criação do espetáculo, na criação coletiva estavam em jogo também, como “elementos estreitamente vinculados um ao outro”, “a abolição da função especializada e a polivalência artística”, ou seja, “um acúmulo de atributos em cada artista envolvido ou uma transitoriedade mais fluida das funções entre eles[5]”. Essa perspectiva é corroborada por Sílvia Fernandes[6], para quem a “diluição da divisão rígida entre funções artísticas”, nos processos de criação coletiva, era decorrente da “intenção de fazer dos trabalhos o fruto da colaboração de cada participante”. Desse modo, todos “os participantes eram autores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, sonoplastas e produtores dos espetáculos” (FERNANDES, 2000: 14). Em outras palavras, pode-se dizer que, no âmbito da criação coletiva, a dramaturgia e a encenação passaram a ser funções assumidas pelo coletivo de artistas responsável pela obra em processo. Segundo Pavis (1999: 80), no trabalho coletivo ocorre o que Brecht denomina “socialização do saber”: “a encenação não representa mais a palavra de um autor (seja este autor dramático, encenador ou ator), porém a marca mais ou menos visível e assumida da palavra coletiva”.
Nessa mesma direção, Roubine[7] vai destacar, a partir do trabalho realizado pelo Teatro Laboratório, de Grotóvski[8], a concepção de uma nova prática, na qual o texto não é mais a fonte da encenação – nem o é uma concepção cênica, produzida anteriormente pelo encenador – mas emerge do trabalho criativo realizado na sala de ensaio, da comunhão entre corpo e voz do ator e a operação do diretor. Nesse sentido, não haveria mais a “necessidade de [se] recorrer a um texto-pretexto, a um texto anteriormente construído. De então em diante, é o conjunto de todos os que representam o texto que se constitui no seu autor coletivo”. Roubine (1998: 77) salienta ainda que “estamos aqui diante de uma nova concepção de texto dramático. Não mais uma ‘obra’, mas aquilo que os anglo-saxões chamam de work in progress, um material aberto e transformável”. Para ele, essa nova concepção de dramaturgia, produzida numa prática coletiva de criação, implicaria na discussão de um “cacife ideológico” ainda imperante no teatro, o status de “autor” da obra: “trata-se de saber em que mãos cairá o poder artístico, [...] a quem caberá tomar as opções fundamentais, e quem levará aquilo que antigamente se chamava glória” (ROUBINE, 1998: 45).
Como é perceptível, não é possível discutir a criação compartilhada sem levar em consideração a questão da autoria, já apontada por Barthes. Como ele, Foucault[9] também vai discutir a função do autor. Para Foucault, no entanto, essa discussão não se restringe ao campo da linguagem, mas diz respeito a questões de ordem política e econômica. Ao colocar que o discurso “não era originalmente um produto, uma coisa, um bem: [que ele] era essencialmente um ato”, e que ele foi “historicamente um gesto carregado de riscos antes de ser um bem extraído de um circuito de propriedades”, Foucault afirma o pensamento da autoria – de modo inverso à perspectiva burguesa de propriedade intelectual – como ato transgressor. Em outras palavras, um processo compartilhado de criação teatral, ao colocar as relações criativas como um lugar de saberes socializados – a genealogia do saber é uma genealogia do poder – acaba por deslocar o conceito de autoria do sentido de propriedade e aponta para a criação como ato político. Guattari afirma:
O novo paradigma estético tem implicações ético-políticas porque quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada [...]. Mas essa escolha ética não mais emana de uma enunciação transcendente, de um código de lei ou de um deus único e todo-poderoso. A própria gênese da enunciação encontra-se tomada pelo movimento de criação processual[10].
A postura adotada pelos grupos, nessa época, era absolutamente política, apesar do tema nem sempre abordar fatos ou questões sociais. Como salienta Reinaldo Maia[11], tratava-se de buscar uma nova “organização do coletivo de trabalho”, relações produtivas que questionavam o modo vigente de organização (propícia a uma “acumulação capitalista[12]”) das grandes companhias teatrais. Segundo ele, havia uma relação intrínseca entre o contexto histórico de surgimento da criação coletiva e a formação, no Brasil, de um pensamento político sobre a cena que, para além de uma abordagem temática, questionasse os modos de criação e produção teatral.
Sílvia Fernandes também aborda o problema das relações entre criação coletiva e atuação política, mas lança uma nova luz sobre a questão. Segundo ela (FERNANDES, 2000: 27), havia, na conjuntura ditatorial do país, um forte patrulhamento ideológico por parte de grupos engajados politicamente – ou seja, “comprometidos ideologicamente com determinados agrupamentos de esquerda” – em relação à validade das opções dramatúrgicas poéticas de grupos que buscavam, sob um sistema de criação cooperativado, a construção de uma linguagem própria, mas que não encenavam ou produziam, necessariamente, dramaturgias com temas sociais. Em resposta, alguns desses grupos – como o Pessoal do Victor, no exemplo citado por ela – apontavam a flagrante contradição que existia entre o tema e o modo de produção de alguns espetáculos “engajados politicamente” – caso da montagem de Gota D´Água, produzida por Casa Grande em 1975 – pois, muitas vezes, as relações de opressão e exploração colocadas em cena estavam presentes no modo de organização trabalhista da própria montagem[13].
A crítica atingia [...] toda a tendência da década de 70 de desenvolvimento de uma dramaturgia preocupada em discutir problemas do povo brasileiro. Apesar de elegerem como protagonista central o homem oprimido e explorado, as peças eram financiadas por produtores que, pagando salários flagrantemente desiguais aos trabalhadores do espetáculo, tornavam a forma de produção um espelho das desigualdades criticadas no drama (FERNANDES, 2000: 28).
A democratização da criação cênica era um dos pontos mais defendidos por aqueles que sustentaram a iniciativa de uma criação compartilhada, pois esta propunha uma maior liberdade e uma efetiva coletivização dos modos de produção teatral. Dentro dessa perspectiva, a democratização não se restringia ao coletivo de artistas que produziam o espetáculo, mas se vinculava também ao desejo de uma participação coletiva mais ampla, o que incluía o âmbito da sociedade e, nesse sentido, a integração do espectador à obra teatral.
Na busca de uma nova relação com a platéia [...] procurou-se subverter a experiência de passividade por parte dos espectadores, de forma a que não se acomodassem enquanto convidados distantes da cena, mas que assumissem um papel mais ativo, crítico e integrado. No limite, almejou-se que o projeto artístico viesse a se configurar como uma criação de todos, rompendo-se a barreira entre artistas e público. Tal objetivo fez com que vários grupos deixassem os palcos italianos e criassem espetáculos e intervenções em ruas e praças, na busca de um contato direto com os transeuntes-espectadores. Procurava-se com isso, também, atingir e conscientizar criticamente um público que jamais iria ao teatro. Neste desejo de “participação” encontrava-se embutido um projeto utópico de transformação da realidade (ARAÚJO, 2008: 29).
São exemplares dessa perspectiva de coletivização do projeto artístico, o trabalho realizado por importantes grupos do período que, operando em um sistema de criação coletiva, produziram algumas das obras teatrais mais significativas e representativas de sua própria época, como as emblemáticas Paradise Now, realizada em 1968 pelo Living Theater, 1789, realizada em 1970 pelo Théâtre du Soleil e, no Brasil, Gracías Señor, trabalho que estreou em 1971, inaugurando uma nova fase do Teatro Oficina. A montagem era apresentada em 12 horas e durava duas noites.
Estreado em 15 de maio de 1971, em Brasília, o novo trabalho do Oficina foi apresentado para um público de 5 mil pessoas que acompanharam, no campus da Universidade local, os atores desenvolverem o que já não se pretendia mais ser um espetáculo teatral, mas, sim, um rito de passagem. Havia um roteiro prévio, mas nesse rito em que se projetava a esquizofrenia coletiva e o processo de lobotomização em curso na sociedade brasileira, já se estava mais próximo do conceito de happening e de performance, em que a relação com o público era intensificada e uma grande margem da encenação era deixada ao acaso. O teatro, ali, já era Te-ato, como o grupo passou a pregar. [...] O texto, ou roteiro, de Gracias Señor [...] revela uma estrutura mais rigorosa do que se poderia supor em circunstâncias de criação tão abertas. Na verdade, era uma colagem de textos de Nietzsche (Assim Falou Zaratrusta), Shakespeare (Hamlet), Brecht (Mahagony) e Oswald de Andrade (Manifesto Antropofágico e Serafim Ponte Grande) estruturados num jogo dramático simples e direto[14].
Apesar das distinções que havia entre os modos de organização, escolhas temáticas e investigações cênicas dos grupos teatrais que proliferaram nas décadas de 60 e 70, é inegável a produtividade e importância do trabalho realizado por eles, tanto no Brasil, como no mundo. No entanto, a partir da década de 80, com o fim da ditadura militar no país e a conseqüente alteração da conjuntura política brasileira, as condições de produção no teatro também se alteraram e assistiu-se à “morte” – ou, pelo menos, à atrofia – da maioria dos grupos teatrais, com honrosas exceções, como, por exemplo, o próprio Teatro Oficina – hoje chamado Oficina Uzyna Uzona – a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (fundada em 1978, em Porto Alegre) e o Grupo Galpão (criado em 1982, em Belo Horizonte) que, como modelos de grupos estáveis, sobrevivem até hoje. Além disso, assistiu-se, também, ao desenvolvimento de uma encenação autoral, na qual a criação cênica é marcada pela concepção do encenador, ou seja, pela produção de uma escritura teatral autônoma em relação ao texto dramático. Em uma encenação autoral, afirma Sílvia Fernandes[15], o encenador é responsável não somente pela concepção, mas também pela direção e roteirização do espetáculo. Nesse sentido, é possível pensar o trabalho autoral de encenação, na esteira de José Da Costa, como uma criação cênico-dramatúrgica conjugada.
A noção de criação cênico-dramatúrgica conjugada se refere ao campo do teatro contemporâneo em que a dramaturgia é construída como script (ou roteiro); muitas vezes como teatralização de textos de outros gêneros literários e discursivos (narrativas de ficção, cartas, diários, relatos de viagem etc.) e se produz em conexão direta com as necessidades, demandas e características específicas de projetos cênicos particulares[16].
Posso citar como exemplos de criações cênico-dramatúrgicas conjugadas, algumas importantes montagens desse período, como os espetáculos encenados por Gerald Thomas (Carmem com Filtro, Electra com Creta, Quartett), Bia Lessa (Ensaio nº 1: a tragédia brasileira, Orlando) e Antunes Filho (Macunaíma, Gilgamesh, Nova Velha História), além daqueles dirigidos por Renato Cohen, Ulisses Cruz e outros. O desenvolvimento de uma escrita cênica autoral – que introduziu, no país, “um movimento que, há pelo menos uma década, reunia encenadores norte-americanos [...] e europeus[17]” – vai marcar, segundo Baumgärtel[18], uma profunda “reorientação estética” no campo da criação teatral brasileira. Reorientação que acabou por influenciar, de maneira significativa, a formação artística e profissional dos próprios grupos de teatro e de seus integrantes, pois, muitas vezes, os encenadores assumiram, na relação com essas agrupações, uma função pedagógica de mestres, cumprindo – como é o caso de Antunes Filho, em relação ao CPT – a tradição dos famosos sistemas ou métodos de atuação, como os de Stanislávski, Meierhold ou Grotóvski. Nesse sentido, é possível afirmar que esses encenadores não só orientaram o treinamento atoral dos grupos, principalmente daqueles compostos, de maneira predominante, por atores, como também, em profunda correlação com esse primeiro aspecto, acabaram determinando a configuração estética de muitos dos espetáculos produzidos no contexto grupal, como é o caso de Gabriel Villela que, com o Grupo Galpão, montou os espetáculos Romeu e Julieta e Rua da Amargura, cuja estética barroca evidencia a marca forte do encenador.
Em relação à dramaturgia brasileira, Baumgärtel[19] afirma que, com o fim da ditadura e a conseqüente abertura política e econômica do Brasil, no final dos anos 80, tornou-se patente que havia uma crise em curso no país. Segundo ele, como a entrada da sociedade brasileira, no início dos anos 90, “na realidade da economia e da cultura globalizada”, ficou evidente que “a estética tradicional da militância, pautada num estilo hegemonicamente dramático, se mostrava incapaz de expressar criticamente as novas questões sociais e angústias pessoais” do público de teatro. Ou seja, pode-se afirmar que – embora houvesse vestígios de experimentações de uma linguagem não dramática ainda nos anos 80 – houve pouco avanço no sentido de uma investigação textual de elementos lingüísticos que pudessem dar conta da complexidade das relações sociais contemporâneas, ainda que a cena teatral (mais que o texto) já viesse, claramente, desenvolvendo escritas cênicas não-referenciais, não lineares e fragmentadas.
Para Baumgärtel, as tentativas de abertura do modelo dramático – no âmbito da dramaturgia brasileira desse período – para outras formas de escrita dramatúrgica que estivessem para “além do drama ou excluídas tradicionalmente do cânone formal” dramático corresponderam, na maior parte das vezes, ao modelo que Szondi descreve, em sua análise da dramaturgia moderna, como tentativas de “salvar o drama”. Isso significa dizer que, embora os dramaturgos buscassem incorporar à sua estruturação poética, elementos formais que escapassem de uma estética ilusionista – como aqueles “provenientes do realismo fantástico, do surrealismo, da história em quadrinhos e dos seriados de TV” – os textos, ainda que não fossem mais “rigorosos”, correspondiam, do mesmo modo, a uma estética própria do realismo dramático – forma predominante, até então, da dramaturgia brasileira – mesmo que esse não fosse mais capaz de discutir “as forças formadoras da realidade social e da percepção individual desta”.
Para Baumgärtel, essa crise da dramaturgia teria raízes não só em uma possível “hegemonia dos meios audiovisuais” – principalmente da televisão que, segundo ele, poderia propiciar a formação, ou pelo menos a manutenção, de um público “dramático” – mas também em aspectos concernentes às relações produtivas do teatro, sendo os principais motivos, segundo ele, tanto a presença de um “modelo teatral” pautado no “cena-centrismo das vanguardas européias e anglo-americanas” – isto é, pautado na concepção autoral dos encenadores – quanto a “impossibilidade econômica de se viver de uma pesquisa dramatúrgica estritamente teatral” e o “surgimento do teatro de grupo que muitas vezes eliminou a figura do dramaturgo individual”. No entanto, como Baumgärtel mesmo salienta, a partir de meados dos anos 90, as pesquisas em torno do processo colaborativo vão re-introduzir, como elemento presente e necessário, o dramaturgo no processo de criação do espetáculo, “levando o grupo a investigações de ordem dramatúrgica” que buscavam, muitas vezes, a construção de obras teatrais que pudessem dialogar com o horizonte de expectativas do público de teatro no Brasil, ao considerar, como afirma Luiz Alberto de Abreu, o fenômeno teatral a partir da relação entre o público e o espetáculo.
Aparentemente situar o fenômeno teatral na relação efêmera do espetáculo com o público é uma obviedade. No entanto, essa obviedade produz profundas mudanças. De um lado recoloca o público como elemento importante a ser levado em conta no processo de criação. De outro, afasta a ilusão narcisista de que toda complexidade do fenômeno teatral possa ser reduzida a um único artista [...].
A re-introdução do público como valor a ser considerado num processo de criação artística é assunto complexo e que pede reflexão maior que não cabe no momento. Por ora, basta levantar que o público, em geral, não tem sido incluído como elemento fundamental nas discussões estéticas. [...] No entanto, o público é o elemento que traz ao artista não só o pulso da contemporaneidade como é o fio que o conduz ao universo de sua própria cultura[20].
É a partir das críticas feitas às práticas anteriores – tanto à criação coletiva, no sentido de sua (in)eficácia estética, quanto à encenação autoral, no sentido de um domínio absoluto dos encenadores sobre a cena – que, em meados dos anos 90, foram retomadas, no Brasil, as práticas compartilhadas de criação. Retomada que foi caracterizada, no entanto, pela necessidade não só de autonomia, mas, principalmente, da garantia de um espaço de proposição relacionado à especificidade de cada função artística ligada à cena, inclusive da dramaturgia. Começava a se aprofundar a pesquisa em torno da criação de uma obra teatral por meio do processo colaborativo. Parecia haver o desejo, em contraposição a um grande desenvolvimento, a partir dos anos 80, do papel do encenador, de uma autonomia – e de uma autoria – criativa por parte das outras funções vinculadas à cena. Porque se a noção de uma criação compartilhada implica em uma desierarquização entre as funções artísticas, isso significa dizer que também os espaços de proposição e decisão são horizontalizados, fazendo com que a autoria da obra resultante seja, em decorrência disso, compartilhada.
No que tange às críticas feitas em relação à criação coletiva, pode-se dizer que uma boa parte dos estudos atuais centrados sobre o processo colaborativo[21] – ao propor um modelo geral para a criação coletiva dos anos 60 e 70, a fim de distingui-la da prática hodierna – parece deixar de considerar que, em muitos grupos e países, principalmente na América Latina, ela não foi abandonada como prática produtiva e que seu exercício constante parece ter levado a uma superação de suas próprias deficiências.
Ao se considerar o material teórico produzido por esses coletivos teatrais, é possível perceber que a descrição da criação coletiva, pensada como método, não se difere, de maneira substancial, do chamado processo colaborativo, pois, inúmeras vezes, no processo de criação coletiva, havia a necessidade de que pessoas se ocupassem de tarefas específicas relacionadas à criação do espetáculo, tais como organização de ensaios, improvisos e definições relativas à própria cena (função que muitos grupos denominaram como “animador” e não “diretor”, por questões ideológicas); ou da costura cênica, dando coerência ao material coletado por todos (chamado “dramaturgista” ou “conselheiro literário”, pelas mesmas razões). É perceptível que, muitos dos indivíduos que se uniam em grupos com a proposta de desenvolverem uma criação coletiva, chegaram, com o passar dos anos, perto do que, atualmente, é definida como prática colaborativa, ao caminhar em direção a uma auto-organização, mesmo que fosse sem uma sistematização de seus processos de trabalho. Santiago García, diretor do La Candelaria, é um deles, começando até mesmo a esboçar, a partir da elaboração de uma metodologia, uma definição de funções artísticas específicas no interior da prática criativa.
Segundo García[22], ao começar um processo de criação coletiva, é necessário ter motivação e essa não tem que vir necessariamente do diretor. Espera-se que a proposta venha da “realidade circundante”, daí a importância de se ter conhecimento acerca dos acontecimentos sócio-políticos de seu país. A etapa seguinte é a pesquisa. Dividido em equipes, o grupo recolhe todo material encontrado relacionado ao tema: reportagens, fotos, filmes, músicas, poesia, livros. Posteriormente, se passa às improvisações, visto estar o grupo cheio de informações. Ainda segundo ele, não há uma forma ou método a ser seguido rigidamente, pois cada “obra exige uma técnica, ou uma forma diferente de fazer as improvisações[23]”. Numa quarta etapa, busca-se a definição de um argumento – que virá a ser uma primeira hipótese de estrutura – e os detalhes do tema escolhido vão definindo suas linhas gerais.
Evidentemente, esses passos variam de um trabalho para outro, ou seja, a ordem não é necessariamente essa. Segundo García, aqui já se trata das linhas gerais, ou melhor, argumentais. Essas linhas argumentais começam a ser definidas através de uma série de improvisações, depois de conhecidas as linhas temáticas e expressas numa primeira proposta estrutural. Depois vêm a montagem e o texto. Quanto à montagem, os elementos necessários vão sendo elaborados, paralelamente, ao longo do trabalho. Esses elementos podem ser músicas, canções e corais, vestuário, cenografia etc. Quanto ao texto, este é escrito pela equipe encarregada da dramaturgia (que pode contar com a colaboração de poetas ou escritores). Ainda segundo ele, essa equipe vai recolhendo os diálogos que aparecem nos ensaios e improvisações e, quando escritos, os apresenta ao grupo para serem discutidos e ensaiados.
Todos os aspectos levantados por García evidenciam que a divisão de funções[24] – considerada uma das maiores diferenças entre os dois processos – resulta, na criação coletiva, de uma constante prática e reflexão no interior dos próprios coletivos teatrais que a praticam. E mesmo em um comentário crítico de Antônio Araújo sobre a prática exercida pelos grupos brasileiros nos anos 60 e 70, é possível perceber que o caminho em direção a uma organização funcional é inerente aos processos coletivos; pois, neles, “determinados indivíduos assumiam, veladamente ou com pouca consciência do fato, as áreas de criação que se sentiam mais a vontade, fosse por algum talento ou facilidade específica, fosse pelo prazer advindo daí[25]”.
Para Sílvia Fernandes, no entanto, embora Santiago García designe como criação coletiva o modo de produção teatral do La Candelaria, este seria, de seu ponto de vista, um modo de criação estritamente colaborativo, justamente em função da presença marcante do encenador e do exercício da dramaturgia por uma equipe especializada. Nesse sentido, ela afirma que o processo colaborativo “tem semelhanças com a criação coletiva, mas não se confunde com ela[26]”. Segundo a pesquisadora, mesmo que o processo colaborativo, como conceito, se filie a essa forma de criação cênica, ele guarda, em relação a ela, algumas diferenças fundamentais como, por exemplo, a garantia e especificidade de cada função artística. Para Sílvia Fernandes, as distinções entre os dois processos são evidenciadas, sobretudo, pelas experiências brasileiras de criação coletiva – mais do que pelas experiências colombianas, nas quais ambos os modos de criação se confundem – como é o caso daquelas realizadas pelos grupos teatrais nos anos 70, mas, também, das experiências contemporâneas, como as vivenciadas pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre e pela Luna Lunera, companhia de teatro de Belo Horizonte.
A Luna Lunera, por exemplo, embora já tenha realizado montagens a partir tanto de textos pré-concebidos e de uma concepção de encenação prévia – como em seu primeiro espetáculo, Perdoa-me por me traíres, com direção de Kalluh Araújo – como também a partir de práticas colaborativas – caso de Nessa data querida, montagem resultante de sua participação no projeto Cena 3x4 – evidencia a opção por um sistema de criação coletiva na construção da maioria de seus trabalhos, posteriores à experiência no projeto Cena 3x4. É exemplar dessa opção, o espetáculo Aqueles Dois, cujo tecido dramatúrgico é marcado, fortemente, por traços oriundos do processo de criação, principalmente por aqueles concernentes a um trabalho especificamente atoral, tais como a opção de se iniciar o espetáculo com uma prática de contato improvisação que, aos poucos, se transforma em cena ou as quebras da linha ficcional por meio da introdução do pensamento do ator, confidências e relações que ele guarda com a personagem ou com o conto de origem e seu autor: Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu.
Em Aqueles Dois, da Luna Lunera, os atores assinam tanto a dramaturgia quanto a encenação, sendo responsáveis por todas as decisões estéticas, sejam elas de ordem textual ou cênica. Tal fato é evidenciado pela ficha técnica do espetáculo, na qual constam, como diretores-criadores, os quatro atores que estão em cena – Marcelo Souza e Silva, Cláudio Dias, Odilon Esteves e Rômulo Braga – e ainda o relator do processo e provocador externo à cena, José Walter Albinati. O núcleo de cinco criadores é responsável, ainda, pela criação do cenário e do figurino, pelo treinamento corporal e vocal e pela produção do espetáculo. São eles que relatam o processo:
Em maio de 2007, numa iniciativa informal, sem recursos, a Cia. propôs-se estabelecer internamente um grupo de estudos sobre Contato Improvisação e o Método das Ações Físicas e Verbais, tendo respectivamente Cláudio Dias e Odilon Esteves como mediadores. [...] Na prática, acabou-se por deslocar o mote inicial de estudos para um outro propósito latente: investir num exercício coletivo de direção e dramaturgia a ser desenvolvido pelos atores do grupo. Ainda nesta fase, decidiu-se aplicar as primeiras vivências da pesquisa tendo por base alguns textos aleatórios. Focou-se posteriormente na exploração do conto AQUELES DOIS, de Caio Fernando Abreu, descobrindo nele suas instigantes qualidades épico-dramáticas e uma inspiração para potencial montagem.
Organizou-se um cronograma de direção conduzida a cada semana por um dos quatro atores envolvidos no processo nesta fase, a saber: Marcelo Souza e Silva, Cláudio Dias, Odilon Esteves e José Walter Albinati, tendo este último optado por dedicar-se exclusivamente ao núcleo de direção e dramaturgia, compartilhadas junto aos demais, o que gerou o convite para que Rômulo Braga (Cia. Lúdica) viesse compor o quarteto de atores que se verá em cena.
Esse coletivo partiu de improvisações e imersões na obra de Caio, propôs, sobrepôs e experimentou roteiros e, literalmente “a dez mãos”, assina a criação do espetáculo, que conta de fato com a contribuição do público interessado, presente a cada sessão aberta do Observatório de Criação, cujos feedbacks têm funcionado como autênticos norteadores e ainda se renovarão ao longo da temporada[27].
Assim como Sílvia Fernandes, Rosyane Trotta também afirma a distinção entre os dois processos de criação compartilhada a partir do estudo que realizou, em sua tese de doutoramento[28], a cerca das práticas de criação de alguns grupos de teatro, entre eles a Tribo dos Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. Segundo ela (TROTTA, 2008: 87), embora em ambos os processos o texto não tenha uma existência anterior ao projeto do grupo e sua criação se dê à medida que o espetáculo vai sendo elaborado, na criação coletiva a criação textual – bem como a concepção e produção do espetáculo – fica a cargo dos atores e do diretor, ou seja, na criação coletiva não somente as escolhas relacionadas ao texto cabem a eles, como, por conseqüência, o texto acaba se configurando como uma instância indissociável da cena, uma vez que ele dela emerge. Já no processo colaborativo, os atores participam da construção do espetáculo, mas a criação textual fica a cargo do dramaturgo que, como função específica e especializada, é responsável pelas escolhas relacionadas ao texto. Nesse caso, como afirma Rosyane Trotta, o texto “é construído em diálogo com a cena”, cabendo ao encenador e ao dramaturgo estabelecer o modo como se opera esse diálogo.
Para a pesquisadora, existe ainda uma importante distinção entre os dois processos: enquanto que na criação coletiva, “o ponto de partida para a experimentação cênica é a proposta criada pelo grupo”, no processo colaborativo “o ponto de partida para a experimentação cênica e para a criação do texto é o projeto apresentado pelo encenador”. Isso significa dizer que, enquanto na criação coletiva “o grupo se forma por afinidade entre os participantes e as funções se estabelecem no processo”, no processo de criação colaborativa, segundo ela (TROTTA, 2008: 87), o projeto está centrado na figura do encenador. Ou seja, nesse caso o “grupo se forma por afinidade com o projeto”, sendo cada integrante da equipe de criação “convidado pelo diretor a ocupar determinada função”. Dessa perspectiva, não somente os dois processos se distinguem quanto ao seu modo de criação, como também os campos autorais são diversos. Para Rosyane Trotta, na criação coletiva o campo autoral é coletivo, enquanto que no processo colaborativo, esse campo é plural.
Para o estudo do processo colaborativo, o Teatro da Vertigem e a Escola Livre de Santo André[29] são referências importantes. Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, considera, assim como Sílvia Fernandes, que “o elemento função é o aspecto axial definidor do processo colaborativo[30]”. Para ele, “se a criação coletiva permitia, a cada membro do grupo, a máxima utilização de sua capacidade criadora na associação concomitante de diferentes áreas de criação[31]”, no processo colaborativo, ao contrário, essa capacidade criadora vai ser direcionada para uma determinada função ou atributo, uma vez que a criação colaborativa pressupõe que “todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de hierarquias, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos[32]”.
Se nas criações coletivas o ator ganha, muitas vezes, o estatuto de centro gerador de onde emerge a criação cênica, é inegável, no entanto, que ele – como veículo e executante das propostas de todos os criadores (inclusive dele mesmo) – tem seu olhar intrínseco à cena. Desse modo, parece ser necessário buscar, no interior mesmo da criação, a construção de um olhar obsceno. Não no sentido que essa palavra, em oposição à noção de “cena” – skené, o “lugar onde ocorre a ação” – vai assumir: de um lugar social que, estabelecido em termos de práticas discursivas, é fora da cena, ou seja, aquele diante do qual se apresenta a obra teatral: o lugar do espectador. Aqui, “obsceno”, embora possa ser uma atitude do espectador, adquire a conotação de uma posição privilegiada que vai, ao mesmo tempo, ser externa à cena e interna à criação e que possibilita o exercício de uma “projeção escaldante de tudo que pode ser extraído [...] de um gesto, uma palavra, um som, uma música e da combinação entre eles. Essa projeção ativa – que só pode ser feita em cena e suas conseqüências encontradas diante da cena e na cena[33]” – parece ser, por excelência, tanto o campo do encenador como o campo do dramaturgo, dentro de um processo colaborativo de criação. Partindo da premissa, levantada por Antônio Araújo, de que a definição de funções é o aspecto axial definidor desse modo de criação (ainda que não seja um elemento, como procurei demonstrar, que vá distingui-lo, rigorosamente, da criação coletiva), gostaria de pensar, agora, a especificidade artística dessas duas funções obscenas, ou seja, perceber quais seriam os limites e matérias próprias da encenação e da dramaturgia no âmbito da criação colaborativa.
No que tange ao trabalho de dramaturgia, Antônio Araújo afirma que a presença do dramaturgo na sala de ensaio vai ser, justamente, um dos aspectos mais importantes do modo de organização das relações entre os criadores dentro do processo colaborativo. Tradicionalmente território dos atores e do diretor (eventualmente dos outros artistas mais diretamente vinculados à materialidade da cena, como cenógrafos e iluminadores), a sala de ensaio e o espaço de improviso passam a fazer parte do universo do dramaturgo, antes restrito ao escritório ou gabinete. Já em sua dissertação de mestrado, Antônio Araújo discutia a participação ativa do dramaturgo no processo de criação.
Acreditamos num dramaturgo presente no corpo-a-corpo da sala de ensaio, discutindo não apenas o arcabouço estrutural ou a escolha das palavras, mas também a estruturação cênica daquele material. Nesse sentido, pensamos numa dramaturgia como uma escrita da cena e não como escrita literária, aproximando-a da precariedade e efemeridade da linguagem teatral, apesar do suporte do papel no qual ela se inscreve. [...] Ao invés de um escritor de gabinete, exilado da ação e do corpo do ator, queremos um dramaturgo da sala de ensaio, parceiro vivo e presente dos intérpretes e do diretor (SILVA, 2002: 103).
Nesse sentido, pode-se afirmar que uma dramaturgia em processo pressupõe uma colaboração direta entre texto e cena. Para Antônio Araújo (SILVA, 2002: 103), a dramaturgia, privada de sua “aura de eternidade”, vai se evaporar “no suor da cena, no hic et nunc do fenômeno teatral” ou, em outras palavras, o processo colaborativo vai garantir ao dramaturgo um espaço de experimentação textual, de improvisação dramatúrgica. Ainda segundo ele, a dramaturgia, destituída da idéia de texto fixador ou imutável, não é mais vista como o objeto de onde emana a encenação, mas como um elemento em constante transformação, e o dramaturgo, com “um estatuto de precariedade e provisoriedade igual ao dos outros criadores da cena”, acaba por se tornar tão dependente dos ensaios para o desenvolvimento de sua obra quanto o ator e o diretor (SILVA, 2002: 104). Em razão disso, caberá ao dramaturgo trazer propostas concretas para o desenvolvimento do texto-espetáculo, sejam elas imagéticas, verbais, gestuais ou cênicas, bem como dialogar com o material produzido nos ensaios, em exercícios e improvisos[34].
Quanto ao trabalho de encenação, é possível constatar que, mesmo em espetáculos produzidos em processo (work in process), a idéia de uma posição desierarquizada do encenador – principalmente no que tange à autoria da obra, ou seja, à determinação das escolhas fundamentais de sentido e articulação cênica – pode ser não só mal vista, como ainda não ser aceita por muitos. O encenador Renato Cohen[35], por exemplo, sustenta uma visão mais próxima da posição hierárquica tradicional – na qual o encenador guarda a posição de autoridade máxima da cena, responsável pela concepção e criação total da obra de arte – do que da perspectiva “horizontal” presente no processo colaborativo, pois, para ele, a cena contemporânea privilegia “o criador (em presença), sua voz autoral, em que se acumulam as funções de direção, criação da textualização de processo e linkage da mise-en-scène[36]”. Ele afirma ainda:
Ao encenador-orquestrador da polifonia cênica, na operação dos fluxos intersemióticos, de partituras de textos, imagem, corporeidades e suportes – e não ao dramaturgo – cabe a guia da cena contemporânea. Encarna, nesse sentido, a função de “homem total do teatro” preconizada pelo teatralista Edward Gordon Craig[37].
Em um processo de criação colaborativa, no entanto, o encenador perde a posição de autoridade que lhe é outorgada nos processos tradicionais e seria possível questionar se, junto com a posição de autoridade, ele perderia também sua função. Evidentemente, o encenador que escolhe trabalhar em um sistema de criação colaborativa não busca mais “uma escrita cênica autoral, de grafia inconfundível” (FERNANDES, 2002: 35). Nesse sentido, pode-se afirmar, na esteira de Antônio Araújo, que o encenador-em-processo escolhe esse modo de criação – no qual ele não funciona mais como eixo central na concepção dos espetáculos e a criação se dá a partir de um projeto cênico coletivo, não de um projeto de encenação – como parte de sua poética cênica, uma poética marcada pelo risco e pela alteridade. Essa dinâmica processual, como observa Antonio Araújo, do mesmo modo que define a poética cênica, ou seja, o trabalho do encenador, vai definir, também, todas as outras esferas de criação dentro do processo colaborativo:
A encenação-em-processo é uma encenação negociada, ou, se quisermos, é uma encenação de alteridades.
E não é somente ela que se encontra em desenvolvimento: o imperativo processual impregna e mobiliza tudo. Temos, portanto, uma dramaturgia em processo, uma interpretação em processo, uma iluminação em processo, e assim por diante. No caso específico do processo colaborativo, num âmbito mais amplo do que aquele delineado por Cohen, não se trata apenas da estruturação de um “roteiro” ou “storyboard”. Há o objetivo de se constituir uma dramaturgia textual. Porém, a sua formulação pode passar longe dos modelos dramáticos convencionais e até mesmo incorporar procedimentos artísticos os mais diferenciados (SILVA, 2008: 191).
A encenação em processo (bem como a dramaturgia) apresentaria, na perspectiva de Antônio Araújo, uma estrutura móvel, instável, sujeita às ondas de turbulência geradas pelo conflito entre as diferentes processualidades. Essas turbulências vão afetar as formalizações cênicas e textuais de modo direto e simultâneo, sem que, em razão disso, elas sejam enfraquecidas. Segundo ele (SILVA, 2008:191), os dois pólos – encenação e dramaturgia – não vão se desestruturar – pois não se submetem um ao outro e, nesse sentido, não se anulam nem se dissolvem – mas, ao contrário, vão se contaminar e se fortalecer, adquirindo “uma estrutura porosa, permeável e flexível”. Em razão disso, a encenação, por já ter inscrito no texto sua “poética espetacular”, não “desconstrói ou relê o texto ao seu bel prazer”. Do mesmo modo, a dramaturgia, “em processo de encenação”, já terá, ela também, “inoculado” sua “textualidade” ou teatralidade no discurso cênico (SILVA, 2008: 191).
Como funções que guardam uma posição externa à cena e que são responsáveis por níveis estruturais em relação à criação da obra espetacular, encenação e dramaturgia acabam por ter, no âmbito da criação colaborativa, seus limites borrados, e, talvez, não seja possível falar de uma dramaturgia espetacular sem confundir seu nível de atuação com o de uma poética da cena, própria do trabalho do encenador. Para Antônio Araújo, a tensão existente entre a dramaturgia e a encenação durante o processo de criação de uma obra é uma de suas principais linhas de força, justamente porque operam em conjunto, sem que uma esteja a serviço da outra. Segundo ele, o dramaturgo também cria, de certo modo, a encenação, bem como o encenador tem participação na criação do texto.
Cena e texto estão juntos, dialogam, e, de certa forma, sem perder sua autonomia ou campo, estão marcados e contaminados um pelo outro. No limite, ambos abdicam do seu caráter processual em si, para adquirirem uma dinâmica processual inter-relacional. Em outras palavras, trata-se de uma “dramaturgia em processo de encenação” e de uma “encenação em processo de dramaturgização” (SILVA, 2008: 191).
Dessa perspectiva, buscar uma demarcação estrita dos territórios de autoria, no interior desses processos, é, de certo modo, uma atitude contraditória: é mais pertinente desfiar, das tramas do tecido dramatúrgico, as possíveis marcas deixadas por um percurso processual e pela proximidade da poética espetacular. Desse ponto de vista, é possível pensar em um conceito de dramaturgia que, decorrente de um processo de criação compartilhado, não somente privilegie a autonomia das diversas vozes criadoras – dos seus gestos de enunciação, das matérias por meio das quais elas operam – mas garanta, também, a marca desse embate na superfície do texto mesmo: uma dramaturgia polifônica.
[2] SILVA, Antônio C. de Araújo. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Escola de Comunicações e Artes da USP, 2008, p. 181.
[3] BUENAVENTURA, Enrique. La dramaturgia del actor. www.teatrodelpueblo.org.ar (acessado em 20/03/2006). Tradução minha do original em espanhol: “Sólo un proceso de producción que organice la participación creadora de los actores en todas las etapas y niveles del discurso del espectáculo puede ser el genotexto de textos que no sean meras imitaciones o adaptaciones de la tradición o la vanguardia del teatro occidental, de textos que elaboren su lenguaje y sus personajes con las realidades que hoy y aquí vivimos, mediante esa asimilación de todas las influencias que solo da la madurez de una expresión artística”.
[4] Ibidem. Tradução minha do original em espanhol: “Para ello es necesario pasar de la condición de "histrión" a la condición de actor, de la condición de intérprete a la de creador que tiene el derecho y el deber de intervenir (metodológicamente) en todos los niveles y aspectos del proceso de producción del discurso del espectáculo y en las relaciones de éste con el público”.
[5] SILVA, Antônio C. de Araújo. A Gênese da Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Escola de Comunicação e Artes da USP, 2002, p. 101.
[6] FERNANDES, Sílvia. Grupos teatrais: anos 70. Campinas: Editora da UNICAMP, 2000, p. 14.
[7] ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp. 66-67.
[8] Segundo Grotóvski, o teatro é “um encontro entre pessoas criativas. Sou eu, o diretor, que me defronto com o ator, e a auto-revelação do ator me dá a revelação de mim mesmo. Os atores e eu nos defrontamos com o texto. [...] Para o ator e o diretor, o texto do autor é uma espécie de bisturi que nos possibilita [...] encontrar o que está escondido dentro de nós e realizar o ato de encontrar os outros: em outras palavras, transcender nossa solidão. [...] Para mim, criador de teatro, o importante não são as palavras, mas o que fazemos delas, o que confere vida às palavras inanimadas do texto” (GROTÓVSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992, p. 50).
[9] FOUCAULT, Michel. O que é um autor? IN: Ditos e Escritos, III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 275.
[10] GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 137.
[11]MAIA, Reinaldo. Duas ou três coisinhas sobre o processo colaborativo. S/R (artigo inédito).
[12] Ibidem.
[13] Em entrevista concedida à pesquisadora, Paulo Betti, ator do grupo, levanta a questão.
[14] RAMOS, Luiz Fernando. Gracías Portugal. Texto fornecido por Sílvia Fernandes (s/d).
[15] FERNANDES, Sílvia. O discurso cênico da Companhia dos Atores IN: FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 132.
[16] DA COSTA FILHO, José. Teatro brasileiro contemporâneo: um estudo da escritura cênico-dramatúrgica atual. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras da UERJ, 2003, p. 13.
[17] FERNANDES, 2010: 132.
[18] BAUMGÄRTEL, Stephan A. Em busca de uma teatralidade textual performativa na sombra da globalização: reflexões sobre a situação da dramaturgia brasileira no fim dos anos 80. S/R (artigo inédito).
[19] BAUMGÄRTEL, op. cit. Todas as referências seguintes a Baumgärtel são ao mesmo artigo do autor que, sendo inédito, não possui referências de data, local de publicação ou páginas.
[20] ABREU, Luiz Alberto de. Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação. CADERNOS DA ELT, Santo André, v. 1, n. 0, mar. 2003, p. 38.
[21] Posso citar como exemplo, os estudos de Adélia Nicolete Abreu e de Luiz Alberto de Abreu, nos quais há uma distinção clara entre os dois modos de criação, pautada, principalmente, na especificidade artística presente no processo colaborativo. Além disso, eles tecem uma forte crítica em relação à qualidade estética da produção teatral resultante da criação coletiva. Também Antônio Araújo, em sua dissertação de mestrado (2002), vai discutir esses mesmos aspectos, sob uma perspectiva bastante semelhante. Já em sua tese de doutorado (2008), ele relativiza a questão e reconhece não só a importância de muitas obras produzidas em um sistema de criação coletiva, como também o fato de que, em diversos processos de criação coletiva, vivenciados tanto no Brasil como na América Latina de um modo geral, muitas vezes havia a presença marcante do diretor (ainda que o dramaturgo não se constituísse, de fato, como uma função específica), aproximando a prática da criação coletiva do processo colaborativo.
[24] Mesmo em termos de metodologia de criação, pode-se dizer que existem grandes semelhanças entre os dois processos de criação compartilhada da cena. Antônio Araújo (SILVA, 2002: 106) divide o processo colaborativo em três grandes etapas (ou momentos):
1. Etapa de livre exploração e investigação: em que as questões centrais do projeto são estudadas, improvisadas e experimentadas, com o objetivo de mapear o campo da pesquisa, levando à identificação de parâmetros e possibilidades. Aqui é onde se deu, fundamentalmente, o levantamento do material cênico;
2. Etapa de estruturação dramatúrgica: em que ocorre a seleção do que foi levantado, visando à criação de partituras de ação, esboços de cena e, em seguida, à roteirização propriamente dita. Essa etapa pressupõe o estabelecimento de, pelo menos, uma primeira versão do texto;
3. Etapa de estruturação do espetáculo e de aprofundamento interpretativo: em que a escrita da cena passa a ocupar o centro das preocupações, tanto no que diz respeito às marcações, espaço cênico, tratamento visual, sonoro, etc., quanto ao aprimoramento do trabalho do ator. O aspecto dramatúrgico continua a ser desenvolvido aqui, enquanto lapidação e acabamento, porém como um foco secundário.
[26] FERNANDES, Sílvia. O lugar da Vertigem IN: ARAÚJO et alii. Trilogia bíblica. São Paulo: Publifolha, 2002, p. 37.
[27] Disponível em www.cialunalunera.blogspot.com (acessado em 13/02/2011).
[28] TROTTA, Rosyane. A autoria coletiva no processo de criação teatral. Tese (Doutorado em Teatro) – Centro de Letras e Artes da UNIRIO, 2008.
[29] A partir dos anos 90, criadores e pensadores importantes da cena contemporânea paulista, como Antônio Araújo, Luiz Alberto de Abreu, Tiche Vianna, Luiz Fernando Ramos e Francisco Medeiros, entre outros, vão desenvolver, no âmbito da Escola Livre de Teatro de Santo André, importantes experiências de aprendizagem e criação colaborativa. Essas experiências vão influenciar o pensamento pedagógico de outros centros formadores, como o Galpão Cine Horto, de Belo Horizonte e a Faculdade Dulcina de Moraes, em Brasília, e difundir a pesquisa em torno do processo colaborativo em diversos grupos do cenário nacional, como o próprio Grupo Galpão, a Maldita Cia. e o Grupo Teatro Invertido, de Belo Horizonte, e o Teatro do Concreto, de Brasília.
[31] Ibidem.
[32] SILVA, 2002: 101 (grifos meus).
[33] ARTAUD, 1999: 81.
[34] De certo modo, isso cabe a todos os criadores da cena. Ainda que, para Antônio Araújo, a tríade básica da criação colaborativa seja composta por atores, diretor e dramaturgo, ele considera que todos os artistas envolvidos na criação de uma obra, “apesar de comprometidos com determinado aspecto da criação, precisariam integrar-se numa discussão de caráter mais generalizante”.
[35] COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo: Perspectiva, 2004b.
[37] Ibidem.
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