Embora
o conceito de polifonia – desenvolvido por Bakhtin acerca da obra de
Dostoiévski – se debruce, especificamente, sobre a produção de um único autor,
ele é bastante profícuo – em razão de suas características específicas – para
se pensar não somente as relações criativas que ocorrem no âmbito dos processos
compartilhados de criação, mas, principalmente, a tessitura resultante desses
processos. Antônio Araújo também aborda, em sua tese de doutoramento, o
conceito de polifonia, mas em uma perspectiva diversa, pois centrada na
definição conceitual do processo colaborativo e das relações entre os criadores.
Aqui, o meu desejo é buscar para a dramaturgia produzida em um processo de
criação colaborativa, um conceito que abarque suas características formais,
decorrentes, do meu ponto de vista, desse modo de produção no qual as matérias
cênicas diversas estão em permanente fricção e diálogo.
Segundo
Bakhtin (2008: 5), a polifonia é caracterizada, precisamente, pela “multiplicidade
de consciências eqüipolentes e seus mundos que se combinam numa unidade de
acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade”. Desse modo, uma tessitura
polifônica não se caracteriza por uma idéia de progressão ou de acumulação –
isto é, ela não é caracterizada por aquilo que Bakhtin denominou, em relação à
visão artística de Goethe, como série em
formação[1]
– mas opera, basicamente, por meio de suas categorias fundamentais, a coexistência e a interação (BAKHTIN, 2008: 31). Isso significa dizer que, no texto
polifônico, não só há uma multiplicidade de vozes em diálogo constante, como
também, em conseqüência desse dialogismo, há ainda uma simultaneidade de planos
– uma multiplanaridade – e uma heterogeneidade de matérias das quais esse
tecido é constituído (BAKHTIN, 2008: 16). Assim, embora a obra polifônica possa
ter, como em Dostoiévski, uma “profunda atração pela forma dramática[2]”,
o conceito de polifonia é incompatível, conforme salientado pelo teórico russo,
com a premissa de um mundo homogêneo, típico da poética do drama, pois este é
monologicamente uno. Em outras palavras,
a multiplicidade de vozes, planos e matérias resultaria no enfraquecimento da
forma dramática.
As réplicas do
diálogo dramático não subvertem o mundo a ser representado, não o tornam
multiplanar; ao contrário, para serem autenticamente dramáticas, elas
necessitam da mais monolítica unidade desse mundo. [...] As personagens mantêm
afinidade dialógica na perspectiva do autor, diretor, espectador, no fundo preciso
de um universo monocomposto. A concepção da ação dramática que soluciona todas
as oposições dialógicas é puramente monológica. A verdadeira multiplanaridade
destruiria o drama, pois a ação dramática baseada na unidade do mundo, já não
poderia relacionar e resolver essa multiplanaridade (BAKHTIN, 2008: 18).
Diferentemente
da forma dramática – que, por meio da progressão de uma ação, ocorre na
dimensão temporal – a polifonia, segundo Bakhtin, vai ocorrer no espaço e
procurar “captar as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las
e contrapô-las”, pois, na obra polifônica, “interpretar o mundo implica em
pensar todos os seus conteúdos como simultâneos e atinar-lhes as inter-relações em um corte temporal[3]”.
Nesse sentido, é possível distinguir o dialogismo característico de uma
tessitura dramatúrgica polifônica da noção de diálogo que caracteriza a poética
do dramático ou mesmo da premissa de que o fenômeno teatral é, por excelência,
uma construção coletiva, isto é, da idéia de que o fenômeno teatral poderia ser
polifônico simplesmente por ser constituído por uma determinada multiplicidade
de elementos materiais, ainda que a resultante cênica desta multiplicidade seja
homogênea ou busque a totalização, como na gesamtkustwerk
(obra de arte total) preconizada por Wagner. Em uma dramaturgia polifônica, ao contrário, a heterogeneidade dos
diversos elementos significantes presentes no tecido dramatúrgico da cena, é
resultante de um modo de produção não somente coletivo, mas que deseja o confronto
entre as vozes criadoras, garantindo sua imiscibilidade e eqüipolência.
Desse
modo, tanto o processo de criação é polifônico como também o serão, como aspectos
decorrentes deste primeiro, o discurso cênico produzido e o mundo ficcional
plasmado por meio das relações entre os criadores e as matérias heterogêneas
que compõem a cena. Dessa perspectiva, é possível afirmar que, em uma dramaturgia polifônica, a relação entre
as vozes criadoras – ou entre as matérias significantes do discurso cênico – produz
uma inscrição, um rastro desse embate entre vozes na superfície do texto e, até
mesmo, na estruturação, por assim dizer, “fabular” da dramaturgia, o que é
evidenciado, por exemplo, pelo uso da coralidade. Assim, embora o conceito de polifonia
não esteja restrito à produção escrita – pois se refere também ao diálogo que é
operado entre as matérias heterogêneas do discurso cênico, fazendo com este se
constitua como um tecido multiplanar – um aspecto bastante importante do
dialogismo presente nesse conceito é a percepção de que ele vai não somente localizar
a dramaturgia polifônica nas fronteiras entre a escrita e a cena, como, em
decorrência disso, vai desterritorializá-la.
Nesse
sentido, como salienta Sílvia Fernandes[4],
talvez seja arriscado dissociar a escrita da cena, ou a textualidade da
teatralidade – como em Barthes, que definia a teatralidade como o teatro menos
o texto – uma vez que “a criação conjunta de cena e texto”, nos processos
contemporâneos de criação colaborativa, “supera a polarização entre as duas
instâncias e contribui para a diluição de fronteiras rígidas, abrindo espaço a
um vasto campo de práticas que subsidia e informa tanto a produção do texto
literário quanto do texto cênico” (FERNANDES, 2010: 102). Como ela afirma em
relação à experiência do Teatro da Vertigem, cuja “produção de dramaturgias e
encenações baseadas em pressupostos construtivos semelhantes [...] explica, ao
menos em parte, a inclinação desses textos para a incorporação de alguns
paradigmas cênicos”, sem dúvida alguma, o texto colaborativo deverá refletir,
na apropriação lingüística que faz da matéria cênica, o processo polifônico que
o engendrou.
[1] “[Goethe] procura perceber todas as
contradições existentes como diferentes etapas de um desenvolvimento uno, tende
a ver em cada fenômeno do presente um vestígio do passado, o ápice da
atualidade ou uma tendência do futuro; como conseqüência, nada para ele se
dispõe num plano extensivo” (BAKHTIN 2008: 31).
[2]
BAKHTIN, op. cit., p. 18.
[4] FERNANDES, Sílvia. Teatralidade e textualidade: a relação
entre cena e texto em algumas experiências de teatro brasileiro contemporâneo IN:
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades
Contemporâneas. São Paulo, Perspectiva, 2010, pp. 101-111.
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