segunda-feira, maio 28, 2012

1.5 Dramaturgias polifônicas, poéticas do espaço


Embora o conceito de polifonia – desenvolvido por Bakhtin acerca da obra de Dostoiévski – se debruce, especificamente, sobre a produção de um único autor, ele é bastante profícuo – em razão de suas características específicas – para se pensar não somente as relações criativas que ocorrem no âmbito dos processos compartilhados de criação, mas, principalmente, a tessitura resultante desses processos. Antônio Araújo também aborda, em sua tese de doutoramento, o conceito de polifonia, mas em uma perspectiva diversa, pois centrada na definição conceitual do processo colaborativo e das relações entre os criadores. Aqui, o meu desejo é buscar para a dramaturgia produzida em um processo de criação colaborativa, um conceito que abarque suas características formais, decorrentes, do meu ponto de vista, desse modo de produção no qual as matérias cênicas diversas estão em permanente fricção e diálogo.  
Segundo Bakhtin (2008: 5), a polifonia é caracterizada, precisamente, pela “multiplicidade de consciências eqüipolentes e seus mundos que se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade”. Desse modo, uma tessitura polifônica não se caracteriza por uma idéia de progressão ou de acumulação – isto é, ela não é caracterizada por aquilo que Bakhtin denominou, em relação à visão artística de Goethe, como série em formação[1] – mas opera, basicamente, por meio de suas categorias fundamentais, a coexistência e a interação (BAKHTIN, 2008: 31). Isso significa dizer que, no texto polifônico, não só há uma multiplicidade de vozes em diálogo constante, como também, em conseqüência desse dialogismo, há ainda uma simultaneidade de planos – uma multiplanaridade – e uma heterogeneidade de matérias das quais esse tecido é constituído (BAKHTIN, 2008: 16). Assim, embora a obra polifônica possa ter, como em Dostoiévski, uma “profunda atração pela forma dramática[2]”, o conceito de polifonia é incompatível, conforme salientado pelo teórico russo, com a premissa de um mundo homogêneo, típico da poética do drama, pois este é monologicamente uno.  Em outras palavras, a multiplicidade de vozes, planos e matérias resultaria no enfraquecimento da forma dramática.

As réplicas do diálogo dramático não subvertem o mundo a ser representado, não o tornam multiplanar; ao contrário, para serem autenticamente dramáticas, elas necessitam da mais monolítica unidade desse mundo. [...] As personagens mantêm afinidade dialógica na perspectiva do autor, diretor, espectador, no fundo preciso de um universo monocomposto. A concepção da ação dramática que soluciona todas as oposições dialógicas é puramente monológica. A verdadeira multiplanaridade destruiria o drama, pois a ação dramática baseada na unidade do mundo, já não poderia relacionar e resolver essa multiplanaridade (BAKHTIN, 2008: 18).
 
Diferentemente da forma dramática – que, por meio da progressão de uma ação, ocorre na dimensão temporal – a polifonia, segundo Bakhtin, vai ocorrer no espaço e procurar “captar as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las e contrapô-las”, pois, na obra polifônica, “interpretar o mundo implica em pensar todos os seus conteúdos como simultâneos e atinar-lhes as inter-relações em um corte temporal[3]”. Nesse sentido, é possível distinguir o dialogismo característico de uma tessitura dramatúrgica polifônica da noção de diálogo que caracteriza a poética do dramático ou mesmo da premissa de que o fenômeno teatral é, por excelência, uma construção coletiva, isto é, da idéia de que o fenômeno teatral poderia ser polifônico simplesmente por ser constituído por uma determinada multiplicidade de elementos materiais, ainda que a resultante cênica desta multiplicidade seja homogênea ou busque a totalização, como na gesamtkustwerk (obra de arte total) preconizada por Wagner. Em uma dramaturgia polifônica, ao contrário, a heterogeneidade dos diversos elementos significantes presentes no tecido dramatúrgico da cena, é resultante de um modo de produção não somente coletivo, mas que deseja o confronto entre as vozes criadoras, garantindo sua imiscibilidade e eqüipolência.
Desse modo, tanto o processo de criação é polifônico como também o serão, como aspectos decorrentes deste primeiro, o discurso cênico produzido e o mundo ficcional plasmado por meio das relações entre os criadores e as matérias heterogêneas que compõem a cena. Dessa perspectiva, é possível afirmar que, em uma dramaturgia polifônica, a relação entre as vozes criadoras – ou entre as matérias significantes do discurso cênico – produz uma inscrição, um rastro desse embate entre vozes na superfície do texto e, até mesmo, na estruturação, por assim dizer, “fabular” da dramaturgia, o que é evidenciado, por exemplo, pelo uso da coralidade. Assim, embora o conceito de polifonia não esteja restrito à produção escrita – pois se refere também ao diálogo que é operado entre as matérias heterogêneas do discurso cênico, fazendo com este se constitua como um tecido multiplanar – um aspecto bastante importante do dialogismo presente nesse conceito é a percepção de que ele vai não somente localizar a dramaturgia polifônica nas fronteiras entre a escrita e a cena, como, em decorrência disso, vai desterritorializá-la.
Nesse sentido, como salienta Sílvia Fernandes[4], talvez seja arriscado dissociar a escrita da cena, ou a textualidade da teatralidade – como em Barthes, que definia a teatralidade como o teatro menos o texto – uma vez que “a criação conjunta de cena e texto”, nos processos contemporâneos de criação colaborativa, “supera a polarização entre as duas instâncias e contribui para a diluição de fronteiras rígidas, abrindo espaço a um vasto campo de práticas que subsidia e informa tanto a produção do texto literário quanto do texto cênico” (FERNANDES, 2010: 102). Como ela afirma em relação à experiência do Teatro da Vertigem, cuja “produção de dramaturgias e encenações baseadas em pressupostos construtivos semelhantes [...] explica, ao menos em parte, a inclinação desses textos para a incorporação de alguns paradigmas cênicos”, sem dúvida alguma, o texto colaborativo deverá refletir, na apropriação lingüística que faz da matéria cênica, o processo polifônico que o engendrou.


[1] “[Goethe] procura perceber todas as contradições existentes como diferentes etapas de um desenvolvimento uno, tende a ver em cada fenômeno do presente um vestígio do passado, o ápice da atualidade ou uma tendência do futuro; como conseqüência, nada para ele se dispõe num plano extensivo” (BAKHTIN 2008: 31).
[2] BAKHTIN, op. cit., p. 18.
[3] Ibidem: 31. Grifos do autor.
[4] FERNANDES, Sílvia. Teatralidade e textualidade: a relação entre cena e texto em algumas experiências de teatro brasileiro contemporâneo IN: FERNANDES, Sílvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo, Perspectiva, 2010, pp. 101-111.

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