quinta-feira, novembro 10, 2011

Bonecos encantadores em opções duvidosas, da série: críticas do FENATA

Categoria: Teatro de Bonecos/Animação
Dia: 10/11/2011.

O espetáculo O menino que abria portas – Eruma Vezeu, da Cia. Articularte – Teatro e Bonecos, de São Paulo, tem um grande mérito: seus bonecos. Confeccionados pela também atriz Surley Valério – que faz a voz de Eruma Vezeu, protagonista da história – alguns bonecos são encantadores, como o menino Eruma e seu amigo Lico, outros são bastante inventivos e possibilitam efeitos inusitados, como a Mãe, cujos braços esticam até dominar toda a cena, e o corpo-mola do cão Trapo que, aos olhos do espectador, torna ainda mais simpático o companheiro inseparável de Eruma.
Outro aspecto interessante de O menino que abria portas é o jogo que ocorre entre os bonecos e os atores-manipuladores, marcado desde o início do espetáculo. De cara, há um jogo cômico do Velho – que, na voz de Renato Bego, será o narrador da história – com dois deles: a moça (Luiza Andrade), com quem é só carinhos, e o atrapalhado rapaz (Paulo Mendonça), com quem esbraveja e fica nervoso. Com a entrada do menino Eruma, este jogo se amplia na brincadeira da bola, que ele deixa cair inúmeras vezes para a mesma moça pegar, como as crianças pequenas costumam fazer. Também são interessantes os usos do cenário que, bastante simples, mas funcional, transforma-se em esconderijo, barca na chuva e cemitério, bem como a manipulação de luzes e sombras.
No entanto, a adaptação do texto de Luís Alberto de Abreu – a cargo de Dario Uzam, que também assina a direção – deixa a desejar. A dramaturgia apresenta várias lacunas (que também a encenação não resolve), não amarrando as ações e situações que ocorrem em cena, além de tornar confusas algumas relações já dadas. Nesse sentido, é exemplar a relação entre o menino e o Velho: embora seja perceptível que ambos sejam a mesma pessoa (até pelas semelhanças entre os bonecos, que também têm o mesmo nome), algumas escolhas cênicas e textuais – como a informação de que os dois meninos, Eruma e Lico, azucrinavam o velho que morava no fim da rua, ou seja, o narrador – tornam incongruente o desfecho, quando, ao atravessar a última porta – a morte – o Velho reencontra seu amigo de infância e primeira perda do menino Eruma, o cão Trapo.
Também em relação ao motivo central, fio condutor da narrativa, a dramaturgia peca: a insistência na idéia de que o menino “abria portas” não se concretiza em cena: não parece haver portas “fechadas”, para ele ou para os outros, que precisem ser abertas. De fato, o que é dado a ver é a passagem de Eruma pelas diversas fases da vida, pois vemos o menino crescer, descobrir amigos, o mundo, a morte e o amor.
Mas, sobretudo, o que mais me incomoda em O menino que abria portas é a manutenção de comportamentos sociais retrógrados, como os clichês de gênero. Isso se dá em relação à menina Lila, primeiro amor de Eruma, que é loirinha, bonitinha e cheia de frescuras de “meninas”, e também em relação à Mãe, única responsável pela educação do menino, pois o pai – assim como os desenhos animados que também repetem esse clichê – está sempre ausente. Porém, o aspecto mais grave dessa manutenção é, a meu ver, em relação, justamente, à educação das crianças. Embora seja algo muitíssimo naturalizado em nossa sociedade, tratar o uso do castigo físico como uma forma de punição não só comum, mas bastante aceitável, ou seja, tratá-lo de forma tão leve (e leviana) parece-me bastante questionável em uma montagem que se pretende para crianças. 

quarta-feira, novembro 09, 2011

Teatro popular, teatro político, da série: críticas do FENATA

Categoria: Teatro de Rua.
Dia: 08.11.2011
  
           O espetáculo Deus ajuda os Bão, apresentado ontem no Calçadão, pelo Coletivo Boato Clandestino (Curitiba/PR) e dirigido por Karla Neves, é uma atualização cênica de texto homônimo, escrito por Arnaldo Jabor para os extintos CPC (Centros Populares de Cultura) da UNE. Embora tenha sido escrito há mais de 50 anos, o texto trata de temática bastante atual, ainda presente na sociedade brasileira contemporânea: as relações de opressão.
            Em função disso, parece mais do que pertinente a utilização que o Boato Clandestino faz, para a adaptação que ontem assistimos, das técnicas e formas teatrais desenvolvidas pelo grande teórico brasileiro Augusto Boal, reunidas sob a denominação de Teatro do Oprimido. Segundo o projeto de montagem do coletivo, são justamente nessa estética que os principais elementos teatrais encontrados no espetáculo tiveram origem, tais como a utilização da “imagem opressor/oprimido na criação do figurino, adereços e maquiagem” e da música como fio condutor da narrativa. A música – executada ao vivo por Asaph Eleutério – é, aliás, um dos aspectos mais interessantes do espetáculo.  
A filiação ao teatro de linhagem brechtiana é evidente desde o início de Deus ajuda os Bão, tanto no que diz respeito à relação com o público, como também no que concerne às decisões estéticas: à maneira épica, os quatro atores – Jeferson Walaszek, Igor Schiavo (responsável pela adaptação do texto), Juliana Leitoles e Valeria Zimermann – vão, à vista do público e a partir dos quatro caixotes que guardam todos os adereços necessários à encenação, trocar de personagens, montar os cenários e construir as situações que marcam a trajetória de Formiguinho, cidadão comum que parte em uma verdadeira saga, a fim de conseguir colocar uma simples portinha em sua casa.
            Para conseguir a autorização necessária, Formiguinho galga, degrau por degrau, a escala dos poderosos: do bandido, “dono” da comunidade na qual ele vive (clara referência às favelas e à guerra do tráfico de drogas), ele passa ao vereador e, deste, ao apresentador de programa de auditório – em citações diretas a vários “ícones” da mídia televisiva – que o remete, então, ao deputado-latifundiário (referências à corrupção política, à exploração do trabalhador rural e ao MST) para, enfim, por uma “trilha de McDonald´s”, chegar ao Tio Sam, numa crítica evidente ao imperialismo cultural e econômico dos Estados Unidos. Em todas as instâncias, seu pedido é negado e Formiguinho resolve então, por sua conta e risco, colocar a portinha de qualquer jeito. Nesse momento, ao público é deixada a decisão de mudar ou não o final da história de Formiguinho: deixá-lo ser assassinado pelo manda-chuva de sua comunidade, ou, com a solidariedade de todos, realizar seu sonho tão simples e justo?
            A partir dessas e de outras referências pertencentes ao contexto social brasileiro da atualidade, a montagem traz, para os dias de hoje, as questões presentes no texto de 1959, aproximando o espectador e exigindo dele uma participação ativa nos acontecimentos, sem perder em clareza e em divertimento, pois, como dizia Brecht, o teatro é, antes de tudo, diversão.

terça-feira, novembro 08, 2011

Educação sem didatismo, da série: críticas do FENATA

Categoria: Teatro de Bonecos/Animação
Espetáculos dos dias 07 e 08 de novembro de 2011.

         Ontem e hoje pude assistir, dentro da programação do FENATA, a dois espetáculos de animação do Grupo Teatro de La Plaza (SP), ambos feitos para crianças: Histórias com Desperdícios, com dramaturgia, atuação e direção (dividida com Carlos Canosa) de Hector López Girondo, também responsável pela dramaturgia de Revolução na Cozinha, bem como por sua direção e atuação, ambas compartilhadas, no segundo caso, com Júlio Pompeo.
Ainda que eu questione certa tendência didática que o teatro para crianças parece possuir – como se a relação do adulto com a criança fosse sempre de lhe ensinar algo, ao invés de com ela aprender – devo dizer que, no caso dos dois espetáculos assistidos, ao aspecto educativo, somou-se o jogo lúdico.
Histórias com Desperdícios tem, como mote central, a história de um catador de lixo que, ao encontrar um velho rádio, mergulha no universo da fantasia, transformando, à vista do público, todo o “lixo” que se encontra espalhado pelo palco em cenários e personagens de múltiplas histórias. A aparente simplicidade dessa transformação é um dos aspectos mais interessantes do espetáculo, bem como o uso de uma língua inventada, uma espécie de grammelot no qual se misturam sonoridades e palavras de línguas diversas, como o português, o inglês e o espanhol. Diante de nossos olhos, nascem edifícios e casinhas de papelão, rios de plástico, árvores de garrafas, montanhas, maquinarias e diversos personagens cujas histórias se interligam a partir de elementos que conectam um espaço construído em cena a outro, como, por exemplo, o ônibus que leva às crianças à escola, para depois atravessar campos e rios e dar lugar à história do casal que, de certo modo, remete à história do próprio catador.
O espetáculo trata não somente do consumo desenfreado e de suas conseqüências ambientais, como o desperdício, o lixo e a poluição, mas também da massificação do ser humano, de sua desumanização e possível destruição. Notável a reação das crianças, no que diz respeito ao homem, também interpretado por Girondo, que vem para solucionar problemas e que traz, com sua ação, problemas ainda maiores. Inicialmente entusiasmadas com toda a destruição que ele promove do cenário (quem nunca viu uma criança construir algo somente para ter o prazer de destruí-lo em seguida?), elas logo vaiam sua atitude, quando essa mesma destruição começa a se transformar em morte, quando o jogo deixa de ser lúdico para feri-las em sua humanidade.
Apesar dos méritos, Histórias com Desperdícios é mais irregular do que Revolução na Cozinha, principalmente no que diz respeito à dramaturgia, mais bem amarrada neste segundo trabalho que, também em relação ao jogo dos atores com os objetos e em relação à sua ludicidade, tem melhor resultado.
Nesse espetáculo, a partir da história de um chef de cozinha que, atrapalhado com a feitura de seus pratos, resolve comprar uma máquina para ajudá-lo em seus afazeres, vemos os habitantes da cozinha ganhar vida e se revoltar contra a chegada da máquina que só sabe fabricar hambúrgueres, ameaçando a existência saudável de todos eles. Aqui, o aspecto pedagógico não é tão evidente, soando mais como uma leve crítica ao imperialismo das grandes redes de fast food, como a McDonald´s, pois a máquina pretende dominar o mundo. Para detê-la, ao chef vão se unir os seres que ele, com sua imaginação, fabricou a partir dos objetos de cozinha e dos ingredientes culinários – como a ajudante Margô e a dama-vassoura, com que ele dança um tango – além da jovem platéia que, mesmo sem estímulos diretos, participa ativamente do jogo cênico.
Do espetáculo, merece destaque, ainda, a primorosa manipulação de Júlio Pompeo, invisível em relação à boa parte dos objetos, bem como a atuação de Héctor Girondo que conseguiu captar, com sua simpatia, a cumplicidade do público, fazendo-nos embarcar no jogo entre a realidade e o sonho.
Em tempo: fui a ambos os espetáculos com meu filho Thomás e ele, como criança sagaz que é, é sempre um bom termômetro no que se refere a esse universo teatral: gosto de ver suas reações e conversar com ele sobre suas impressões para, delas, destilar o meu olhar sobre o trabalho: obrigada, Thomás, pela colaboração nesta crítica.

Em busca do Deus, da série: críticas do FENATA

Às Dez em Cena, dia 06.11.2011
 
“E outras vezes, Potente Implacável Senhor, que teria sido melhor não morrer e ficar fiando o destino das gentes e Agda-daninha às noites só cantando e dançando, que é verdade que sei melhor cantar e dançar do que morrer.”

O cenário é simples: três painéis, no fundo do palco, delicadamente iluminados. Vozes começam a soar, em sussurros ininteligíveis, ganidos de cães. Corpos se movimentam no escuro, em gestualidade animal. Assim começa Agda, espetáculo que é fruto da parceria, iniciada em 2001, entre a Boa Companhia e o Grupo Matula Teatro (Campinas/SP). Como no conto homônimo de Hilda Hilst – no qual o espetáculo é inspirado – Agda é também o nome da personagem central, mulher que, por romper com os tabus da comunidade em que vive, atrai sobre si todo o ressentimento, fúria e crueldade de seus habitantes.
Misturando elementos do teatro e da dança, Melissa Lopes, Aldiane Dala Costa e Veronica Fabrini, as três atrizes em cena, personificam não só Agda, mas também as vozes da aldeia, principalmente dos três homens – Kalau, Celônio e Orto – que são seus amantes. E são justamente as vozes dos três que ouvimos soar, já no início do espetáculo, como percepções supersticiosas da mulher: Agda-cadela, Agda-daninha, Agda-lacraia. Agda, aquela que aparece, para cada um deles, como distinta e sempre outra. Agda inapreensível. Como Orto diz, nesse primeiro diálogo que soa em off, enquanto as três atrizes-bailarinas se movimentam, construindo e desconstruindo, com seus corpos e vozes, imagens que remetem à animalidade dessa mulher, maldita por todos: “muita coisa junta vive dentro de Agda e a nossa parte é nada”.
A partir do que poderíamos chamar de uma dramaturgia do corpo, o espetáculo constrói com delicadeza a oposição entre Agda – mulher em busca da transcendência, angustiada entre suas dimensões sagrada e profana – e o olhar, violento e opressor, que a comunidade lança sobre ela. Para isso, coopera, além do ótimo desempenho das três atrizes, a manipulação do figurino, assinado por Juliana Pfeifer e Sandra Pestana. Simples, belo e versátil, encontra especial destaque nas saias que, se transformando em calças, vão compor, juntamente com paletós e punhais, as figuras masculinas. Ao serem manipuladas pelas atrizes, elas se tornam véus, mortalhas, extensões do corpo de Agda. Ao final do espetáculo, às saias e paletós, as atrizes acrescem panos vermelhos – que lembram, em chave metonímica, trajes eclesiásticos – para compor os diversos tipos que habitam a aldeia e que se dirigem ao público, como promotores, juízes e carrascos, na condenação da mulher da qual não conseguem suportar a singularidade.
Essa mesma delicadeza está presente no movimento quase coreográfico – e aqui quero destacar um dos momentos mais belos de Agda: o insólito tango dançado pelos homens que relembram, com raiva e desejo, sua amante – bem como na inspirada trilha sonora, composta por Mauro Braga e Silas de Oliveira, e no trabalho vocal das atrizes, principalmente de Aldiane Dala Costa que, em alguns momentos, consegue produzir suspensões poéticas, em outros, uma musicalidade quase encantatória.
O texto, aliás, merece especial destaque: a potente transcriação dramatúrgica, a cargo de Moacir Ferraz (que também assina a direção), não só conserva a natureza híbrida do conto de Hilda Hilst – no qual se mesclam as instâncias dramática, narrativa e lírica – como, ainda, mantém toda a intensidade de sua escrita, ganhando preciosas nuances no jogo entre a poesia e os corpos que transitam entre as energias masculina e feminina, entre o humano e o animal, entre o profano e o divino.

segunda-feira, novembro 07, 2011

Folias do velho e bom teatro de rua, da série: críticas do FENATA

Categoria: Teatro de Rua.
Dia: 06.11.2011
 
Descendente de uma antiga tradição, que remonta aos mimos romanos, ao teatro de feira medieval e às trupes de Commedia Dell´Arte, o chamado teatro de rua tem se modificado bastante nos últimos anos e trazido à baila uma discussão que se polariza entre um teatro que é feito considerando os elementos do ambiente em que será inserido – pois a cidade não só é cenário, como é, ainda, dramaturgia, trazendo, muitas vezes, situações com conseqüências imprevisíveis para o artista de rua – e aquele que é feito no espaço público e urbano como se fosse feito no interior do edifício teatro. Nesse segundo tipo – bastante comum hoje em dia – não é raro encontrarmos, além das parafernálias típicas da caixa preta, como sonorização, iluminação, microfones, cadeiras para a platéia e, é claro, o próprio palco montado, uma atitude autoritária em relação ao público. Atitude nascida, sem dúvida, do despreparo dos atores em lidar com a imprevisibilidade do espaço urbano.
Foi, então, uma grata surpresa assistir ao espetáculo Folia de um Semideus, sabe-se lá o que é isso, apresentado pelo Grupo Teatral de 4 no Ato, do Rio de Janeiro. Com mais de 15 anos de estrada, o grupo, composto pelos atores Gilvan Balbino – que também assina a direção e a dramaturgia do espetáculo – Pâmela Vicenta, Thiana Bastos, Andress Corrêa e Filippe Neri, demonstrou não só ter domínio das técnicas de um teatro popular, flertando com o circo e com tradições culturais como o candomblé e a folia, mas também prescindir de toda a parafernália mencionada acima.
Sem maiores aparatos, os atores invadem o local definido para a apresentação: estão carregados com instrumentos musicais e balaios, nos quais transportam todos os elementos que serão utilizados, durante o espetáculo, para transformar espaços e corpos. Eles cantam e, enquanto alguns se paramentam, um deles demarca o espaço cênico com farinha. Assim como a “área de jogo”, as personagens também serão construídas, na melhor tradição épica do teatro de rua, no calor da cena e à vista do público.
A relação com o espectador é, por sinal, um dos pontos fortes do trabalho e, nesse sentido, captar sua simpatia é elemento essencial. Para isso, os atores usam das técnicas circenses e da comicidade, centrada na exploração de características fortes de nossa brasilidade, como o gosto pela bebida e a malícia. Infelizmente, essa relação é prejudicada pela acústica do espaço que, embora aberto, se configura como uma espécie de caixa de concreto, na qual o som reverbera. Tal particularidade fez com que, não conseguindo compreender uma boa parte do texto, nos distanciássemos do espetáculo. Quero salientar a projeção vocal do ator Filippe Neri que, mesmo em condições adversas, conseguiu tornar o seu texto compreensível e, assim, segurar nossa atenção.
Dotado de forte musicalidade, Folia de um Semideus narra a história de um semideus que, nascido de uma mulher morta, precisa aprender a ser homem. Torto e malformado, ele é batizado Zé Ninguém e jogado no mundo para se criar. Não só por essas características, mas também por sua esperteza, Zé Ninguém – interpretado pela atriz Pâmela Vicenta – insere-se na linhagem de emblemáticas personagens grotescas, responsáveis pela inversão da ordem das coisas, como Macunaíma e Till. Em sua caminhada pelo mundo, o semideus encontra mendigos, ciganos e vendedores ambulantes, além de uma trupe de teatro, da qual acaba por fazer parte.
Esse, aliás, é um dos melhores momentos do espetáculo, quando, contando com a participação da platéia, a trupe encena – em homenagem metateatral a Shakespeare – a história de Tisbe e Píramo. A encenação é mero pretexto para um delicioso jogo em que se misturam a licenciosidade e o improviso e que é realizado a partir do que é dado pelos espectadores em cena e pelo repertório já sedimentado nos atores. Vale destacar a inusitada participação do “leão”, representado por uma destemida senhora da platéia, e o jogo do “cala boca”, protagonizado pelo simpático ator Gilvan Balbino, além das mortes em série que, por seu paroxismo, levou-nos às gargalhadas. Ao final dessa representação da representação, a trupe, na melhor tradição de teatro de rua, passa o chapéu e canta seu amor à arte que é seu ofício. O amor era nítido também no grupo e no público.

domingo, novembro 06, 2011

Delicadas texturas da cena, da série: críticas do FENATA

Categoria: Às Dez em Cena.
Dia: 05.11.2011.

Sobre o palco, um círculo de cetim vermelho, margeado por quatro cadeiras: duas de frente para a platéia e duas de costas. Para estas últimas, foram conduzidas duas mulheres do público. Ao fundo, em cada ponta do palco desnudo, duas noivas, cujos véus se misturam em uma nuvem de tecidos que está entre elas.  No alto, sobre o círculo vermelho, bandeirolas de chita. A cenografia-figurino, assinada por Ella Melo (em diálogo com a atriz Jandira Testa), é simples, mas de forte impacto visual. Aliás, essa será uma característica do que ocorrerá em cena: as imagens poéticas.
Inspirado na história das duas gêmeas siamesas que, no início do século XX, foram protagonistas da primeira cirurgia de separação realizada no Brasil, Equal é um work in progress, ou seja, um trabalho em processo de construção que, tendo se iniciado com 15 minutos, atualmente tem cerca de meia hora. Dirigido por João Henrique Bernardi e realizado pela Theatro Fase 3 – companhia integrada por 10 senhoras de mais de 60 anos – ele foi pensado, inicialmente, para se apresentar fora do país, no Transit VI, promovido pelo Odin Teatret, o que imprime outra característica ao espetáculo: um texto verbal composto por poucas frases. Estas vão ajudar a desenhar a atmosfera melancólica e como que em suspensão, de Equal. Atmosfera marcada, também, pela bela trilha sonora, na qual se misturam às canções antigas, outras que, saídas da tradição popular, sublinham a relação entre as duas irmãs. É o caso da cantiga Caicó (na bonita interpretação de Maria João) e do ponto de umbanda de Cosme e Damião, médicos que, não por acaso, são irmãos gêmeos como as personagens.
O espetáculo se inicia, justamente, com o ponto de umbanda, ao som do qual as duas senhoras, vestidas de noiva, se movem em gestos rituais. Ao término, as duas se dirigem, com seus buquês vermelhos, para as duas mulheres do público que estão sentadas no proscênio. Retiram os véus, que agora se estendem pelo palco, para prendê-los à cabeça delas (as mulheres permanecerão, durante todo o espetáculo, estáticas em suas cadeiras, quase objetos desse figurino- cenografia). Em seguida, as duas senhoras carregam suas pequenas malas para as cadeiras posicionadas de frente para a platéia.
Aqui, pela primeira vez, seus gestos não ecoam. Maria senta-se na cadeira e retira da mala uma espécie de mortalha, um véu negro que costura. Rosalina senta-se no chão, em frente à cadeira, e retira da mala uma caixa – que deixa de lado – e uma laranja, que começa a descascar. As ações das duas serão simples e remeterão ao universo da relação familiar e às memórias das duas atrizes, Jandira Testa e Carmen Mattos: descascar a laranja, oferecer à irmã a tampa, dar milho às galinhas, rever antigas fotos, pintar os lábios de vermelho, enfeitar-se, dançar, deitar-se para morrer. Em nós, espectadores, delicadas emoções são despertadas por essas imagens poéticas que compõem a textura cênica.
O espetáculo fecha com uma imagem belíssima, plena poesia visual: Rosalina, deitada com a cabeça sobre sua mala, é coberta, por Maria, com o véu negro-mortalha. Maria, então, se dirige ao centro do círculo de cetim vermelho e o veste: palco-saia. Semelhante a um monumento, estátua, ela arremessa pedrinhas brilhantes no ar. Sementes de futuro? Momentos perdidos no tempo, memórias? Ao fim da cena, também nós, como as pedrinhas lançadas, estamos em estado de suspensão.

Tem história nos objetos? da série: críticas do FENATA

Categoria: Teatro de Bonecos/Animação.
Dia: 05.11.2011
Misturando a animação de objetos, a técnica de clown e a contação de histórias, o espetáculo Tem História no Forno nasce de uma idéia bastante interessante: fazer com que as atividades maçantes do cotidiano se transformem, a partir de novas relações e olhares, em divertidas brincadeiras. Para isso, os atores Luana de Lucca e Yuri Franco, oriundos da Cia. Truks e do Morpheus Teatro, duas importantes referências do teatro de animação, partem de um mote central: dois ajudantes de cozinha, constrangidos pela enfadonha necessidade de arrumar seu ambiente de trabalho, se enveredam pelo universo imaginativo de um deles, Mário, sonhador e apaixonado pelos livros e por histórias. Dina, seu contraponto, é prática, mas não resiste ao poder da imaginação do companheiro e logo, ela também, estará contando histórias.
No entanto, o espetáculo parece não concretizar essa magia: a arrumação da cozinha – pretexto para as ações que se desenrolam – e a conseqüente transformação dos objetos cotidianos em seres vivos, personagens das histórias, não se dá a ver em cena: a cozinha já está, desde o início do espetáculo, demasiado arrumada e os objetos, na maioria das vezes, já estão armados como “bonecos”. O jogo com os livros – motor inicial da imaginação de Mário – também é pouco explorado, bem como diversos objetos que jazem em cena, sem utilidade.
Apesar disso, o espetáculo consegue uma resposta bastante positiva das crianças, principalmente por meio dos jogos de interação propostos pelos atores, em especial por Yuri Franco que, em chave clownesca, deita e rola em brincadeiras com a jovem platéia. No entanto, em diversos momentos, a platéia aquecida e estimulada por essas brincadeiras, tem seus impulsos de interação constrangidos: é pedido a ela que se cale. E fica a pergunta, aos atores: como temperar a relação com o público que, sempre honesto, responde aos estímulos da cena?

Pratativando Mateus, da série: críticas do FENATA

Categoria: Teatro de Rua.
Dia: 05.11.2011

Personagem tradicional das Folias de Reis, Mateus é, sem dúvida, o mais tamado e popular dentre todos. Alma e graça do Reisado, ele é, juntamente com sua noiva Catirina, responsável por alguns dos momentos mais cômicos dessa manifestação cultural. Caracterizado, em geral, pela cara pintada de preto, pelo chapéu grande e pelos óculos escuros, ele é conhecido por sua esperteza e por sua capacidade de improviso, recheada de chistes e de um humor licencioso.
E é justamente na exploração teatral desse personagem tradicional que o espetáculo Pratativando, homenagem ao grande poeta popular Patativa do Assaré, tem seu maior mérito. Interpretado pelo ator-palhaço Cláudio Ivo, que também assina a dramaturgia e direção do espetáculo, Mateus nos conduz a momentos deliciosos nessa espécie de espetáculo-show, no qual se conjugam, ainda, outros elementos da linguagem popular, como o coco, a embolada e a literatura de cordel. São impagáveis os momentos de interação de Mateus com a platéia: no jogo de sedução das moças, na acuidade com que joga com os velhinhos que passam pela cena, na percepção fina dos acontecimentos da rua.
A intromissão de Mateus no show de um cantador que reverencia o maior poeta cearense é, também, o grande pretexto para as ações e peripécias que se desenrolarão ao longo do espetáculo, trazido à Ponta Grossa pelo grupo Mais Caras, de Fortaleza/CE. O grupo é integrado, além de Cláudio Ivo, pelo ator Edmar Cândido. Com a desculpa de procurar Zuleide – que, ao longo do espetáculo, vamos descobrir ser a “avre” de estimação de sua noiva Catirina – Mateus interrompe o show e se apresenta: canta, dança e “impertrepa”, pois é um “autista” completo. No entanto, o espetáculo tem irregularidades dramatúrgicas e de interpretação: ele peca, por exemplo, pelo excesso de didatismo, principalmente na voz do cantador, personagem que contracena com Mateus e que insiste em explicar para a platéia quem são Mateus e Patativa do Assaré, o que é coco e o que é vedete.
Além disso, o espetáculo parece não se decidir entre o desenvolvimento de uma linha de ação dramática e o simples desfile de números musicais e cômicos. Em função disso, a costura dramatúrgica soa frouxa, prendendo-se na verve de Mateus que, desgarrado de seu contexto cultural, carece de pretextos para permanecer em ação. Também em termos de atuação, há desequilíbrio: em contraponto ao palhaço, o ator Edmar Cândido se apresenta fraco e linear, não sustentando o jogo entre o enganador e o enganado. O desnível é agravado pela falta de escuta em cena: em diversos momentos, o cantador é “atropelado” pelo impaciente parceiro de palco. Apesar disso, Pratativando é um espetáculo muito saboroso e não só em função do domínio que Cláudio Ivo tem do “púbis”, da platéia: seu sabor é tributário, também, do universo popular que se nos apresenta por meio da virtuose de Mateus no sapateado e na embolada, na dança do coco, e por meio das belas canções de Patativa do Assaré que, musicadas por Luiz Gonzaga, nos fazem partícipes e coro.

sexta-feira, outubro 21, 2011

1.3 Texturas da cena


 

Com efeito, a partir da teoria brechtiana parece haver, para a criação dramatúrgica, uma íntima relação não mais somente entre conteúdo e forma – como na teoria de Szondi – ou entre a poética do dramático e a poética do espetáculo (forma e forma) – conforme a perspectiva de Ramos – mas também entre formas e modos de produção, ou seja, é colocada em questão a maneira como as relações entre os criadores, durante o processo de criação, interferem na forma teatral resultante. Pode-se afirmar, na esteira de Sarrazac, que o processo de criação da dramaturgia de uma encenação passa a atuar diretamente na conversão das formas dramatúrgicas e, em decorrência disso, nas relações entre textualidade, teatralidade e recepção, uma vez que, a partir do teatro épico, o espectador passa a ser considerado interlocutor privilegiado da cena.
Segundo Luiz Alberto de Abreu[1], “a relação ‘olho no olho’ entre personagens no palco transfere-se para ‘olho no olho’ entre ator/narrador/personagem e público. A ponte obstruída pela ‘quarta parede’ é novamente aberta[2]”, pois, ao privilegiar o diálogo ativo com o espectador, o sistema narrativo opera um deslocamento da ação teatral que, pensada na poética dramática como motor da relação intersubjetiva entre as personagens – da qual o espectador é testemunha e cúmplice, mas não participante – no teatro épico é pensada como uma prática – práxis – discursiva que, interpelando diretamente o espectador, o convida a tomar uma atitude crítica e criadora em relação à cena.

O convite crítico-reflexivo feito ao espectador, nesse caso, pode ser compreendido como um retorno freqüente à própria consciência [...] para, desse lugar que lhe é próprio, elaborar um juízo de valor acerca dos acontecimentos levados à cena. [...] O princípio dramático se mostra interrompido, problematizado, cada vez que um elemento cênico se revela, cada vez que o teatro se apresenta enquanto tal, quebrando com a lógica do drama fechado. As brechas no mecanismo dramático rompem com a ficcionalidade irrestrita e expulsam o espectador da vivência interior da obra, lançando-o de volta à própria consciência, convidando-o a desempenhar um ato propriamente estético, reflexivo [...], para empreender um ato propriamente autoral e analítico[3].

Contudo, questões concernentes às relações entre processo de criação, teatralidade e recepção e à perspectiva da textualidade como elemento material da cena, embora tenham sido inauguradas, na prática, pela dramaturgia brechtiana, não é atributo exclusivo do teatro épico. Já Artaud[4] discutia, em outros termos, a necessidade de se buscar uma maior performatividade do teatro a fim de atingir, concretamente, o espectador. Ao colocar em questão a supremacia do sistema literário e da linguagem verbal em relação à materialidade cênica e à corporeidade[5], dentro do teatro europeu, ele afirmava que a decadência do teatro – bem como de toda a cultura ocidental – se devia ao lugar de honra que, nele, era ocupado pelo texto e pelas convenções lógico-discursivas a ele atreladas. Para Artaud, a literatura funcionava como uma amarra na qual se prendia a linguagem teatral, estritamente cênica, e, nesse sentido, o uso do discurso verbal deveria, no teatro, ser calcado no poder que as palavras teriam de, por meio de sua modulação, ritmo e vibração, atingir a alma e o corpo do espectador. Segundo ele, a performatividade da palavra não estaria ligada ao seu significado, mas à sua existência quase física, à sua materialidade.
Mais do que isso: na perspectiva de Artaud, o texto não é visto como um elemento prévio, origem e fonte de toda a encenação e em relação ao qual esta só poderia ser concebida como “uma segunda versão de um texto definitivamente escrito” (ARTAUD, 2004: 73). Pelo contrário: segundo ele, a encenação constituiria uma linguagem particular, na qual a importância do texto se igualaria a de todos os outros componentes cênicos e a palavra nasceria em estreita relação com a gênese da cena.

[...] Eu creio que o teatro só poderá voltar a ser ele próprio no dia em que os autores dramáticos mudarem completamente sua inspiração e, sobretudo seu meio de escritura. Para mim, a questão que se impõe é de se permitir ao teatro reencontrar sua verdadeira linguagem, linguagem espacial, linguagem de gestos, de atitudes, [...] de gritos e onomatopéias, linguagem sonora, mas que terá a mesma importância intelectual e significação sensível que a linguagem das palavras [...]. [Os] gestos, as atitudes, os signos, serão inventados à medida que forem pensados, e diretamente no palco, onde as palavras nascerão para rematar e concluir esses discursos líricos, feitos de música, de gestos e de signos ativos. (ARTAUD, 2004: 80).

Com uma perspectiva semelhante à de Artaud, no que se refere ao pensamento do teatro como uma linguagem estritamente cênica, Barba[6] amplia a noção de texto e dramaturgia, ao considerar que a relação entre a cena – ou o trabalho que é operado por ela – e o espectador é elemento definidor da noção de ação, central para o seu conceito de dramaturgia. Segundo ele (BARBA & SAVARESE, 1995: 69), “todas as relações, todas as interações entre as personagens ou entre as personagens e as luzes, os sons e os espaços, são ações. Tudo o que trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua compreensão, suas emoções, sua cinestesia, é uma ação”. De maneira complementar, Barba afirma que as ações só são operantes quando elas estão em relação umas com as outras, entrelaçadas em uma textura, ou, em outras palavras, quando elas se tornam um tecido cênico: “a palavra ‘texto’, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa ‘tecendo junto’. Nesse sentido, não há representação que não tenha texto”.
Dessa perspectiva, a noção de dramaturgia corresponderia àquilo que, nos Estudos da Linguagem, é denominado como discurso teatral, o qual se diferencia do texto literário justamente por seu alto poder performativo – ou seja, por seu poder de realizar simbolicamente uma ação – e se caracteriza, basicamente, pela ação intencionada que exerce sobre o espectador (PAVIS, 1999: 103). Isso significa dizer que o discurso teatral é produzido na relação entre a cena – e todos os seus componentes – e o espectador, uma vez que se trata de uma prática de enunciação e suas articulações discursivas[7]. Segundo Charaudeau[8], como o discurso teatral não se reduz à manifestação verbal da linguagem, mas compreende os códigos da manifestação linguageira – isto é, de uma instância extra lingüística na qual se desenvolve a mise-en-scène da significação – e pode utilizar-se de vários códigos semiológicos – tais como o icônico e o gestual – a mise-en-scène discursiva, no teatro, depende, então, das propriedades (ou características) de todos esses códigos e das relações que entre eles se estabelecem, ao atuarem em conjunto.
No vasto campo dos Estudos da Linguagem – que abarca desde a Semiologia até a Análise do Discurso e a Filosofia da Linguagem, na qual se inclui a Teoria dos Atos de Fala[9] – não somente as discussões referentes às noções de texto e discurso vão encontrar eco nas teorias sobre o teatro, como também a própria linguagem teatral vai se tornar, cada vez mais, objeto de discussão desses Estudos, influenciando diretamente o pensamento sobre a Linguagem. É exemplar o mútuo interesse que existe entre os estudos teatrais e as teorias pós-estruturalistas que, já na década de 60, vão se debruçar, de modo especial, sobre as noções de textualidade, teatralidade e autoria e vão acabar por tecer parâmetros bastante pertinentes para se pensar as relações entre texto e cena no teatro contemporâneo. É possível citar, como exemplo, os escritos de Derrida sobre Artaud e uma boa parte da produção crítica de Barthes, para a qual a questão do teatro e da teatralidade é pedra fundamental.
Embora Barthes, ao discutir especificamente a noção de teatralidade[10], pense o texto em certa oposição a ela – uma vez que a teatralidade é, segundo ele, justamente o teatro sem o texto, constituindo-se como uma “espessura de signos e sensações” que “submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior[11]” – no que tange ao texto literário, Barthes vai contrapor, ao conceito de literatura, a noção de escritura. Assim, ele possibilita pensar o texto – antes atrelado ao enunciado verbal – como uma enunciação.
Dessa perspectiva, Barthes[12] considera que o texto vai ser engendrado na relação entre a escritura – constituída por todo trabalho e toda prática de inscrição – e o leitor. Segundo ele, a escritura é gerada pela destruição do conceito de texto como intrinsecamente ligado ao impresso. Ao considerar o texto como um teatro da linguagem em que o escrever é um verbo intransitivo cujo fim é ele mesmo, cujo fim é o trabalho de inscrição, Barthes fatalmente desloca a noção de texto do conceito de obra fechada, acabada, resultante do processo de escrita do autor, para uma percepção mais ampla do texto como fruto da articulação entre a produção do scriptor e a dimensão interpretativa do leitor. Para ele (BARTHES, 2004: 61), o scriptor – ao contrário do autor antigo, que tem como pressuposto uma anterioridade em relação ao texto – nasce ao mesmo tempo em que nasce seu texto. Nesse sentido, o scriptor não precede ou excede sua escrita – ou melhor, seu gesto de inscrição – e não há outro tempo para além do tempo da enunciação: todo texto “é escrito eternamente aqui e agora”. Ou seja, para Barthes, escrever, mais do que uma operação de registro ou “pintura”, é uma operação performativa – uma enunciação cujo conteúdo é o próprio ato de enunciar – e o texto “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original[13]”.

Mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino: o leitor é [...] apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito (BARTHES, 2004: 64).

Ao deslocar a unidade do texto do autor para o leitor, Barthes vai permitir que se conceba tanto a dramaturgia – como prática textual e cênica – quanto o texto resultante desta operação, como um espaço em que se reúnem dimensões múltiplas, originadas no embate entre as diversas escritas, ou melhor, entre os diversos gestos de inscrição que, livres da determinação de um autor-deus, vão compor o tecido dramatúrgico: o gesto do dramaturgo, mas também o gesto do ator, do encenador e de todas as funções vinculadas à sua criação. Em outras palavras, pode-se afirmar que a dramaturgia, ao ser concebida como uma escritura, resulta em uma operação entre textos, em uma tessitura intertextual que vai ser constituída por muitos gestos de enunciação, todos em permanente diálogo. Nesse sentido, Barthes aponta para a destruição do autor, que morre ao mesmo tempo em que nasce o leitor/espectador como o espaço onde se reúne todos os gestos de que a escritura é feita. Mas aponta, também, para a possibilidade da dramaturgia ultrapassar os limites da autoria e da literatura e, não mais vinculada estreitamente a um suporte de papel, ganhar o estatuto de textura da cena, corroborando não somente a teoria brechtiana e o pensamento, em certa medida, de Artaud, mas também a perspectiva de Barba, pois, ao se conceber a dramaturgia como textura cênica, torna-se possível pensá-la, então, não como enunciado, mas como uma enunciação[14] necessariamente coletiva e polissêmica (a morte do autor pressupõe a polissemia do texto[15]). E pensar a dramaturgia como enunciação coletiva, isto é, como um texto que se tece junto, implica em pensá-la no âmbito da criação compartilhada da cena.




[1] Dramaturgo responsável pela dramaturgia de O Livro de Jó, do Grupo Teatro da Vertigem, e professor da Escola Livre de Teatro de Santo André, Luís Alberto de Abreu tem coordenado, nos últimos dez anos, diversas experiências de criação colaborativa, como a Oficina de Dramaturgia e o projeto Cena 3x4, ambos realizados pelo centro cultural Galpão Cine Horto. Para ele, parece ser intrínseca a relação entre processos compartilhados de criação dramatúrgica e uma poética do texto que opere com um sistema narrativo, pois esta se reflete em sua prática teatral, pois ele tanto realiza dramaturgias colaborativas como privilegia, em sua poética, a linguagem rapsódica.
[2] ABREU, Luiz Alberto. A restauração da narrativa IN: O Percevejo, Revista de Teatro, Crítica e Estética do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UNIRIO. Rio de Janeiro, ano 8, nº 9, 2000, p. 124.
[3] DESGRANGES, Flávio. Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador IN: Sala Preta, revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. São Paulo: ECA/USP, n. 8, 2008, p. 14.
[4] Essas questões perpassam todo o pensamento de Artaud. As referências e citações utilizadas aqui são, principalmente, de: ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999; ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2004.
[5] O pensamento artaudiano vai influenciar diretamente diversas manifestações cênicas – como a performance, o happening, o teatro performativo – em que o corpo é presença forte.
[6] BARBA, Eugenio. & SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo, Campinas: HUCITEC, 1995, p. 69.
[7] Em razão da complexidade do estatuto enunciativo do discurso teatral – que ocorre em vários níveis e compreende, principalmente, uma situação interna (relação interlocutiva entre os personagens) e uma situação externa (relação entre as instâncias reais: ator – ou ainda, instância produtora do discurso cênico da qual o ator é veículo – e espectador) – essa ação intencionada encontra-se, muitas vezes, mascarada.
[8] CHARAUDEAU, Patrick. Une analyse sémiolinguistique du discours IN: LANGAGES. Paris: Larousse, n. 117, 1995.
[9] Em Como fazer coisas com as palavras – texto inaugural da Teoria dos Atos de Fala – Austin vai abordar a função performativa da linguagem, por meio do estudo dos verbos performativos. Tal abordagem vai influenciar, diretamente, os estudos contemporâneos sobre a performance, que dela vão se apropriar para discutir a questão da performatividade.
[10] BARTHES, Roland. Le théâtre de Baudelaire IN: Écrits sur le théâtre. Paris: Seuil, 2002, pp. 122-129.
[11] Ibidem : 122. Tradução minha, do original em francês: “épaisseur de signes et de sensations” qui “submerge le texte sous la plénitude de son langage extérieur”.
[12] BARTHES, Roland. A morte do autor IN: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 58-64.
[13] Ibidem: 62.
[14] Segundo Barthes, “a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição sem precisar ser preenchido pela pessoa dos “interlocutores”. Linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além ‘daquele que escreve’, tal como ‘eu’ não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma ‘pessoa’, e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer ‘suportar’ a linguagem, quer dizer, para a esgotar” (BARTHES, 2004: 62).
[15] BARTHES, 2004: 64.