Categoria: Teatro de Rua.
Dia: 06.11.2011
Descendente de uma antiga tradição, que remonta aos mimos romanos, ao teatro de feira medieval e às trupes de Commedia Dell´Arte, o chamado teatro de rua tem se modificado bastante nos últimos anos e trazido à baila uma discussão que se polariza entre um teatro que é feito considerando os elementos do ambiente em que será inserido – pois a cidade não só é cenário, como é, ainda, dramaturgia, trazendo, muitas vezes, situações com conseqüências imprevisíveis para o artista de rua – e aquele que é feito no espaço público e urbano como se fosse feito no interior do edifício teatro. Nesse segundo tipo – bastante comum hoje em dia – não é raro encontrarmos, além das parafernálias típicas da caixa preta, como sonorização, iluminação, microfones, cadeiras para a platéia e, é claro, o próprio palco montado, uma atitude autoritária em relação ao público. Atitude nascida, sem dúvida, do despreparo dos atores em lidar com a imprevisibilidade do espaço urbano.
Foi, então, uma grata surpresa assistir ao espetáculo Folia de um Semideus, sabe-se lá o que é isso, apresentado pelo Grupo Teatral de 4 no Ato, do Rio de Janeiro. Com mais de 15 anos de estrada, o grupo, composto pelos atores Gilvan Balbino – que também assina a direção e a dramaturgia do espetáculo – Pâmela Vicenta, Thiana Bastos, Andress Corrêa e Filippe Neri, demonstrou não só ter domínio das técnicas de um teatro popular, flertando com o circo e com tradições culturais como o candomblé e a folia, mas também prescindir de toda a parafernália mencionada acima.
Sem maiores aparatos, os atores invadem o local definido para a apresentação: estão carregados com instrumentos musicais e balaios, nos quais transportam todos os elementos que serão utilizados, durante o espetáculo, para transformar espaços e corpos. Eles cantam e, enquanto alguns se paramentam, um deles demarca o espaço cênico com farinha. Assim como a “área de jogo”, as personagens também serão construídas, na melhor tradição épica do teatro de rua, no calor da cena e à vista do público.
A relação com o espectador é, por sinal, um dos pontos fortes do trabalho e, nesse sentido, captar sua simpatia é elemento essencial. Para isso, os atores usam das técnicas circenses e da comicidade, centrada na exploração de características fortes de nossa brasilidade, como o gosto pela bebida e a malícia. Infelizmente, essa relação é prejudicada pela acústica do espaço que, embora aberto, se configura como uma espécie de caixa de concreto, na qual o som reverbera. Tal particularidade fez com que, não conseguindo compreender uma boa parte do texto, nos distanciássemos do espetáculo. Quero salientar a projeção vocal do ator Filippe Neri que, mesmo em condições adversas, conseguiu tornar o seu texto compreensível e, assim, segurar nossa atenção.
Dotado de forte musicalidade, Folia de um Semideus narra a história de um semideus que, nascido de uma mulher morta, precisa aprender a ser homem. Torto e malformado, ele é batizado Zé Ninguém e jogado no mundo para se criar. Não só por essas características, mas também por sua esperteza, Zé Ninguém – interpretado pela atriz Pâmela Vicenta – insere-se na linhagem de emblemáticas personagens grotescas, responsáveis pela inversão da ordem das coisas, como Macunaíma e Till. Em sua caminhada pelo mundo, o semideus encontra mendigos, ciganos e vendedores ambulantes, além de uma trupe de teatro, da qual acaba por fazer parte.
Esse, aliás, é um dos melhores momentos do espetáculo, quando, contando com a participação da platéia, a trupe encena – em homenagem metateatral a Shakespeare – a história de Tisbe e Píramo. A encenação é mero pretexto para um delicioso jogo em que se misturam a licenciosidade e o improviso e que é realizado a partir do que é dado pelos espectadores em cena e pelo repertório já sedimentado nos atores. Vale destacar a inusitada participação do “leão”, representado por uma destemida senhora da platéia, e o jogo do “cala boca”, protagonizado pelo simpático ator Gilvan Balbino, além das mortes em série que, por seu paroxismo, levou-nos às gargalhadas. Ao final dessa representação da representação, a trupe, na melhor tradição de teatro de rua, passa o chapéu e canta seu amor à arte que é seu ofício. O amor era nítido também no grupo e no público.
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