terça-feira, novembro 08, 2011

Em busca do Deus, da série: críticas do FENATA

Às Dez em Cena, dia 06.11.2011
 
“E outras vezes, Potente Implacável Senhor, que teria sido melhor não morrer e ficar fiando o destino das gentes e Agda-daninha às noites só cantando e dançando, que é verdade que sei melhor cantar e dançar do que morrer.”

O cenário é simples: três painéis, no fundo do palco, delicadamente iluminados. Vozes começam a soar, em sussurros ininteligíveis, ganidos de cães. Corpos se movimentam no escuro, em gestualidade animal. Assim começa Agda, espetáculo que é fruto da parceria, iniciada em 2001, entre a Boa Companhia e o Grupo Matula Teatro (Campinas/SP). Como no conto homônimo de Hilda Hilst – no qual o espetáculo é inspirado – Agda é também o nome da personagem central, mulher que, por romper com os tabus da comunidade em que vive, atrai sobre si todo o ressentimento, fúria e crueldade de seus habitantes.
Misturando elementos do teatro e da dança, Melissa Lopes, Aldiane Dala Costa e Veronica Fabrini, as três atrizes em cena, personificam não só Agda, mas também as vozes da aldeia, principalmente dos três homens – Kalau, Celônio e Orto – que são seus amantes. E são justamente as vozes dos três que ouvimos soar, já no início do espetáculo, como percepções supersticiosas da mulher: Agda-cadela, Agda-daninha, Agda-lacraia. Agda, aquela que aparece, para cada um deles, como distinta e sempre outra. Agda inapreensível. Como Orto diz, nesse primeiro diálogo que soa em off, enquanto as três atrizes-bailarinas se movimentam, construindo e desconstruindo, com seus corpos e vozes, imagens que remetem à animalidade dessa mulher, maldita por todos: “muita coisa junta vive dentro de Agda e a nossa parte é nada”.
A partir do que poderíamos chamar de uma dramaturgia do corpo, o espetáculo constrói com delicadeza a oposição entre Agda – mulher em busca da transcendência, angustiada entre suas dimensões sagrada e profana – e o olhar, violento e opressor, que a comunidade lança sobre ela. Para isso, coopera, além do ótimo desempenho das três atrizes, a manipulação do figurino, assinado por Juliana Pfeifer e Sandra Pestana. Simples, belo e versátil, encontra especial destaque nas saias que, se transformando em calças, vão compor, juntamente com paletós e punhais, as figuras masculinas. Ao serem manipuladas pelas atrizes, elas se tornam véus, mortalhas, extensões do corpo de Agda. Ao final do espetáculo, às saias e paletós, as atrizes acrescem panos vermelhos – que lembram, em chave metonímica, trajes eclesiásticos – para compor os diversos tipos que habitam a aldeia e que se dirigem ao público, como promotores, juízes e carrascos, na condenação da mulher da qual não conseguem suportar a singularidade.
Essa mesma delicadeza está presente no movimento quase coreográfico – e aqui quero destacar um dos momentos mais belos de Agda: o insólito tango dançado pelos homens que relembram, com raiva e desejo, sua amante – bem como na inspirada trilha sonora, composta por Mauro Braga e Silas de Oliveira, e no trabalho vocal das atrizes, principalmente de Aldiane Dala Costa que, em alguns momentos, consegue produzir suspensões poéticas, em outros, uma musicalidade quase encantatória.
O texto, aliás, merece especial destaque: a potente transcriação dramatúrgica, a cargo de Moacir Ferraz (que também assina a direção), não só conserva a natureza híbrida do conto de Hilda Hilst – no qual se mesclam as instâncias dramática, narrativa e lírica – como, ainda, mantém toda a intensidade de sua escrita, ganhando preciosas nuances no jogo entre a poesia e os corpos que transitam entre as energias masculina e feminina, entre o humano e o animal, entre o profano e o divino.

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